sexta-feira, 6 de maio de 2011

A política e o exercício da cidadania




É inconteste que vivemos um período de grande descrédito na política e nos políticos. O desencanto se deve a vários fatores. Um deles: os sucessivos escândalos envolvendo agentes públicos. Nas escolas e universidades a participação dos jovens no movimento estudantil é mínima. O desinteresse desse segmento é lamentável. Afinal, caberá a eles conduzir os destinos do país.

A política feita com idealismo parece coisa do passado. Até que ponto esta afirmação guarda uma excessiva carga de saudosismo? Não obstante, a imagem que a população faz hoje dessa atividade está associada a interesses e vantagens pessoais. A fulanização da política contribui para reforçar essa situação. E o que dizer dos atuais políticos? Trabalham por causas coletivas? Quem são eles? Defendem propostas de interesse popular? Uma coisa é certa: é preciso estar informado sobre esses assuntos.

Para justificar o desinteresse pela política é comum ouvirmos a seguinte afirmação: “não gosto de política porque os políticos são todos farinha do mesmo saco, são todos corruptos”. Com isso, dão as costas a uma atividade que é vital para a organização da sociedade. Quem se abstém do processo político mal sabe que está dando um cheque em branco para aqueles que vão governá-lo.

Muitos críticos da política também não se dão conta da importância do voto. Enxergam o ato como uma mera obrigação. Não compreendem que este é um direito duramente conquistado. Melhor ainda: historicamente conquistado. A nossa jovem democracia ainda se ressente de aperfeiçoamentos. Impossível esquecer que de 1964 a 1985 vivemos amordaçados e subjugados por uma ditadura militar.

Os hábitos e costumes políticos só serão mudados se houver participação popular na política. Ignorá-la, em última instância, só reforça os políticos que querem usar a política como trampolim para enriquecer. Só haverá transformação real se enxergarmos a administração pública com outros olhos. Somos nós, eleitores, cidadãos, que devemos exigir transparência, ética, eficiência dos gestores públicos e dos nossos representantes no parlamento.

Adotar uma atitude eqüidistante é um erro crasso. Se não concordo com o cenário político, devo questionar: o que fazer para alterá-lo? Discutir política, nesse sentido, é debater os rumos que queremos dar para nossas vidas, nossa cidade, nosso Estado e nosso País. Até mesmo para o futuro do planeta terra. Esqueça, portanto, aquela idéia atrasada, retrógrada, segundo a qual política não se discute. Essa máxima deve ter sido criada por um político muito esperto (e, possivelmente, corrupto).

Todas as relações na sociedade são, em última instância, políticas. O ar que respiramos, só para ficar num exemplo, tem relação direta com a política. Quando está poluído é porque o tema está sendo negligenciado. Nesse sentido, política e cidadania são irmãs siamesas. Uma não sobrevive sem a outra. A cidadania necessária só será edificada se tivermos claro o seu significado político. Ela se traduz no tripé: bem comum, igualdade social e dignidade coletiva.

Viagem ao Reino da Memória



O que é a memória? Para que existe? Por que lembramos? Por que esquecemos? São muitas, é certo, as perguntas que envolvem este tema. O escritor Paul Auster, no livro “O Inventor da Solidão”, oferece uma resposta. Ele define a memória como “o espaço em que uma coisa acontece pela segunda vez”.

Encontrei uma conceituação, no mínimo, curiosa, no Mini Dicionário Sacconi: “Faculdade de conservar e experimentar de novo estados de consciência passados”. E fico a perguntar: Será que a invenção da escrita foi a maneira engenhosa que nós, humanos, encontramos para eternizar “estados de consciência passados”?

Para o escritor argentino Jorge Luís Borges, citado pelo italiano Domenico Di Masi, todos os romances e poemas escritos ao longo dos tempos repetiram, em versões infinitas, tão somente quatros histórias: a de uma cidade sitiada, a de uma viagem, a de uma busca, a do sacritfício de um deus.

No monumental “Em Busca do Tempo Perdido”, o escritor Marcel Proust faz uma fantástica escavação da memória. Recompõe fatos , revive sensações e sentimentos. Proust é um escafandrista. Mergulha em águas abissais para recolher a essência do tempo. Por fim, descobre que o que se perdeu pode ser reconquistado pela memória.

Umberto Eco no romance “A Misteriosa Chama da Rainha Leona” faz uma ambiciosa incursão ao passado. O protagonista Yambo perde parte da memória –afetiva e biográfica. Para recuperá-la, lança-se na leitura febril de jornais, revistas, gibis e livros que marcaram a sua infância e juventude. Eco/Yambo nos conduz, pelo fio da lembrança, a um vasto painel dos anos 30 e 40 do século passado. Farejando o passado, o autor edifica o seu “palácio da memória”, percorrendo labirintos insondáveis.

Palavra e memória (somadas a muita imaginação) são habilmente manipuladas nas aventuras narradas por Xerazade em “As Mil e Uma Noites”. Ela se utiliza desses recursos para seduzir o rei Xeriar. Este, traído por sua mulher, decide matar diariamente cada nova esposa, após uma noite de prazer. Para interromper este círculo de terror, Xerazade casa-se com o rei. Depois da sessão de amor, desfia histórias encadeadas. “Isto não é nada, comparado ao que contarei amanhã à noite”, diz ela. Por fim, Xerazade é poupada.

Voltando a Paul Auster. Na sua obra citada (O Inventor da Solidão), o autor faz uma imersão pelos labirintos da memória para meditar sobre a morte do pai. A reflexão que empreende busca o significado para a existência. É quando ele confronta a “Solidão” com a “Memória”, numa jornada poética que rompe a fronteira entre ficção e realidade. Encerra o livro com um alerta: “Foi. Nunca mais será. Lembre-se”.

Não seria demais supor que somos prisioneiros do tempo e da memória. Mais que isso: prisioneiros do passado; de memórias passadas. Estamos conectados aos nossos antepassados, que nos legaram a sua cultura, saberes e conhecimentos. Assim sendo, a escrita é o veículo que melhor traduz essa perenização.

“Penetra surdamente no reino das palavras” – convida o poeta Carlos Drummond de Andrade, acrescentando:”Lá estão os poemas que esperam ser escritos”. Parafraseando o imortal mineiro, poderíamos dizer: “Penetra no reino da memória. Lá estão os fatos e mistérios que merecem ser revividos”.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Três fábricas de poesia e um cavalo de três rabos



Pode soar estranho, mas é verdade: cavalo de três rabos. Até parece realismo fantástico. Mas não é não. Pode até guardar semelhanças com as histórias do Gabriel García Marquez, o Nobel colombiano. Mas a referência é de outro Nobel – o chileno. Bingo! É ele mesmo – Pablo Neruda.

De onde surgiu essa história de cavalo de três rabos? Eu conto, sem aumentar muitos pontos. Vamos lá: por partes (sem trocadilho de humor negro). É assim... Era uma vez um menino em Temuco, que nessa época atendia pelo nome de Neftali Ricardo Reys. Pois bem, esse menino ficou maluco quando viu na entrada de uma sapataria um cavalo de papel. Era uma peça publicitária, decorativa, para chamar a atenção dos transeuntes.

A mensagem (ou melhor, o cavalo) ficou gravada na memória do poeta. Essa imagem da infância não saiu da sua cabeça de adulto. Já famoso no mundo inteiro, Neruda retorna a Temuco com uma firme determinação: adquirir a relíquia. O dono pediu uma soma astronômica. Neruda desistiu – só temporariamente, do seu intento.

Um belo dia, um incêndio praticamente consumiu a loja. Os bens salvos foram a leilão. E eis que, entre eles, figurava o simpático, querido, desejado cavalinho de papel. Não deu outra: Neruda arrematou a peça. Mas havia alguns detalhes peculiares. O rabo estava chamuscado. A bem da verdade, outras partes do corpo também foram atingidas.

Com imaginação de poeta não se brinca. Ele convocou um amigo pintor para restaurar o seu brinquedo de quatro patas. Assim, o cavalo foi coberto de tinta azul clara e de dourado. Restava, porém, uma parte: o rabo chamuscado. O poeta convocou três amigos para achar uma solução. Acharam três. Ou melhor, cada um arrumou um rabo de uma cor – branca, amarela e preta.

Diante dessa questão, Neruda exerceu o que mais sabia, depois da poesia: a diplomacia. Para não desagradar ninguém, colocou os três rabos no cavalo. Quem quiser conferir o prodígio é só visitar a casa do bardo em Isla Negra. O cavalo está lá, com os três rabos, numa sala especialmente desenhada para ele.

 Isla Negra
Ah, sim, e quanto às três fábricas de poesia? Simples: são as três casas do poeta, transformadas em museu. Nelas Neruda escreveu boa parte de sua extensa e consagrada obra literária. Isla Negra – a do cavalo – era a sua preferida. Ela não é ilha e não é negra. Apenas uma simpática vila de pescadores. É onde o poeta está enterrado, de frente para o mar, ao lado de sua amada, Matilde.

 Neruda e Matilde
A segunda casa é La Chascona, que significa cabelo desarrumado. Foi edificada em Santiago, especialmente para Matilde. Nesse espaço funciona a sede da Fundação Pablo Neruda. Ela possui três divisões, com um pátio central coberto de vegetação e belos jardins. Chama atenção o acervo de obras de arte.

 La Chascona
Por fim, em Valparaíso, encontra-se a sua terceira casa -La Sebastiana. Fica no alto da colina “Bellavista”, de onde se divisa toda a baía da cidade. De qualquer cômodo da casa é possível ver o mar. Ela possui formato de barco. É onde o poeta costumava passar o réveillon. As três moradas eram as suas fábricas de poesia. 

 La Sebastiana

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Trevas do Colonialismo


Coração das Trevas, de Joseph Conrad, é um livro instigante. A narrativa é envolvente. A obra prima pelo rigor da linguagem. Isso fica evidente mesmo numa tradução, no caso de Albino Poli Jr., para a editora L&PM Pocket.

Incrível, mas Conrad aprendeu inglês apenas aos 23 anos. Ele era polonês, de Berdichev. Nasceu em 1857. Ainda assim, foi considerado pela crítica um dos mais importantes escritores da língua inglesa de todos os tempos.

O que mais impressiona em Coração das Trevas? A força da narrativa, através de uma apurada técnica literária. Conrad tem um domínio absoluto sobre o tema que desenvolve. Explica-se: ele foi marinheiro durante 16 anos. Percorreu a Ásia, Áfria, América e Europa.

Coração das Trevas obteve um sucesso tão expressivo que ganhou adaptação livre para o cinema (Apocalipse Now), do diretor Francis Ford Coppola. Destaque para a atuação magistral de Marlon Brando como o enigmático Kurtz.

O pano de fundo do livro é o colonialismo e suas consequências: "O horror! O horror!". Denúncia pungente e, ao mesmo tempo, realista. Baseia-se na viagem que o autor fez ao Congo, comandando um navio, quando contraiu malária, entre outros dissabores.

A vivência do autor fica patente em trechos do livro: "Marlow não era um marinheiro típico (excetuando sua propensão a contar histórias), e, para ele, o significado de um episódio não estava dentro como um cerne, mas fora, envolvendo a narrativa que o descobriu apenas como um fulgor iluminando a neblina, na semelhança de um desses nevoentos halos que às vezes se formam invisíveis pela iluminação espectral do luar".

O personagem Marlow, marinheiro como Conrad, é o seu alter-ego. Ele é quem relata os episódios de Coração das Trevas. Um viagem de barco às entranhas da selva africana, tal como fez Conrad. A expedição liderada por Marlow vai ao encontro de Kurtz.

Ele é descrito como um ser que possui "alma de pureza tão translúcida como um rochedo de cristal". E o seu olhar "não podia ver a chama da vela, mas era amplo o suficiente para abraçar o universo inteiro, pungente o bastante para penetrar todos os corações que batem na escuridão".

Publicado somente em 1902, o livro foi escrito em 1896, ano em que nasceu o primeiro filho de Conrad. O livro foi considerado por Jorge Luis Borges "o mais intenso de todos os relatos que a imaginação humana jamais concebeu".

O autor privou da amizade de muitos literatos de sua época. De todos, porém, de quem mais se aproximou foi Henry James. Inclusive, ambos costumavam desenvolver o mesmo truque literário. O narrador das histórias é um dos personagens e a visão unilateral dos acontecimentos se completa com a de outros.

Com isso, o leitor dispõe de pelos menos dois ângulos da história. Tal recurso permite um julgamento com maior objetividade. É o que acontece, justamente, com Coração das Trevas. Conrad escreveu uma extensa obra, a maioria centrada em relatos marítimos. Outros dois livros de sucesso do autor foram Lorde Jim (1900) e Nostromo (1904).

Em 1917, Conrad fez um comentário esclarecedor sobre os seus escritos: "Chamam-me de escritor do mar...Toda a minha preocupação foi chegar ao valor 'ideal' das coisas, dos acontecimentos, dos seres". Quem se ater ao sub-texto encontrará tais significados permeando os seus livros.

Caricatura de Joseph Conrad

Yamandu Costa - Disparada

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Janis Joplin: Summertime

Summertime é uma das mais belas canções já gravadas em todos os tempos. De todas as interpretações que já ouvi - e foram muitas -, uma me marcou. É a de Janis Joplin. Ela canta com todo sentimento. Aliás, ela é só sentimento. E, claro, com uma técnica vocal apuradíssima. Em minha opinião, nenhuma outra intérprete chegou perto de Janis. Ela tinha uma intensidade eletrizante. Arrebatadora. Confira:

Kind Of Blue


O maior clássico do cool jazz de todos os tempos - Kind Of Blue.O autor dessa preciosidade é o lendário Miles Davis. O disco foi concebido em 1959. Eu nem era nascido. Recentemente, para relembrar os 50 anos desse marco musical, foi lançada uma edição de luxo. Naturalmente, em vinil. Com um detalhe especial: em vinil translúcido. Encartado ao material havia um DVD, faixa bônus e outras "cositas más".

Acompanhe, abaixo, a interpretação de uma das faixas do Kind Of Blue. Um momento genial de Miles Davis com o seu parceiro de então, John Coltrane. Puro virtuosismo.


Miles Davis & John Coltrane - So What

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Desabafo em forma de Poema


Manuel Bandeira, o grande poeta do modernismo brasileiro, ao escrever o poema "Nova Poética", foi além - fez um desabafo. Contra o que? Contra o que ele denominou de "poesia-orvalho", aquela que omite a realidade. Mais que isso: deturpa a realidade. Ele defende uma poética vinculada à vida, à realidade, em oposição à corrente dos "alineados". Baneira dá nome aos bois: menininhas, estrelas alfa, virgens cem por cento e amadas envelhecidas.

Ele até pode parecer agressivo ao utilizar o termo "sórdido". Mas fez um cálculo deliberado. O seu objetivo era estabelecer uma ruptura com padrões antigos, que ainda persistiam (e dominavam) o fazer poético, quando o poema foi escrito em 1949. Tratava-se, em realidade, de um desabafo, de uma ruptura com os defensores da "poesia orvalho".

Bandeira já tinha chocado os tradicionalistas da literatura com o seu poema "Os Sapos", por ocasião da Semana da Arte Moderna, em 1922. Ele não alisava. Escandalizava os conservadores. E ainda por cima oferecia a eles uma "receita de poesia", cujos ingredientes estavam todos "na marca suja da vida". Os assépticos arrepiaram os cabelos.

Confiram o poema Nova Poética:

Vou lançar a teoria do poeta sórdido.
Poeta sórdido: há a marca suja da vida.
Vai um sujeito,
Sai um sujeito de casa com a roupa de brim branco muito bem engomada,
e na primeira esquina passa um caminhão,
salpica-lhe o paletó de uma nódoa de lama:

É a vida.

O poema deve ser como a nódoa no brim:
Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero.

Sei que a poesia é também orvalho.
Mas este fica para as menininhas, as estrelas alfas, as virgens
cem por cento e as amadas que envelheceram sem maldade.

Quem quisar mais Bandeira, pode acessar o seguinte endereço:
http://letrasiesm.blogspot.com/2009/10/manuel-bandeira.html

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Cecília: Verso e Prosa

"...Liberdade, essa palavra
que o sonho humano alimenta
que não há ninguém que explique
e ninguém que não entenda..."
(Romanceiro da Inconfidência)

A escritora Cecília Meireles (1901-1964) deveria ser mais difundida. A sua obra é vasta e de alta qualidade. Muitos títulos da autora estão fora de catálogo. Só garimpando em sebos para conseguir seus livros mais famosos. Um fato contribuiu para emperrar a circulação dos seus trabalhos: uma briga familiar dos herdeiros que dura mais de duas décadas.

E pensar que existe muito material da autora ainda inédito. Só a Editora Nova Fronteira afirma que possui em seu poder textos para aproximadamente quatro volumes em prosa. As publicações são adiadas devido ao medo de contestações judiciais por parte dos herdeiros.

Trata-se de uma injustiça com a obra da autora e, também, com os seus leitores. Cecília obteve, em seu tempo, o reconhecimento da crítica e do público. Possuía a mesma habilidade com a poesia e a prosa. Certa feita, Manuel Bandeira assim a definiu: “Concha, mas de orelha; Água, mas de lágrima; Ar com sentimento. Brisa, viração. Da asa de uma abelha”.

Como poeta, Cecília é musical, de um lirismo puro, fluido, transcendente, que perpassa a efemeridade da vida, buscando continuamente a forma da simplicidade, sem abandonar o preciosismo do fazer poético. O crítico e ensaísta Davi Arrigucci Jr chegou a afirmar sobre a poeta: “...Cecília Meireles parece ter cantado sempre o mesmo tema: a busca do eterno no transitório, do transcendente no contingente, do milênio no minuto”.

O poema Motivo, que foi musicado pelo cantor Fagner e obteve grande sucesso nos anos 80, é um bom exemplo do estilo poético de Cecília:

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada.

Agora, um outro poema de Cecília, que representa muito bem a sua temática. Ele se chama Canção.

Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.

Quanto à sua prosa, um texto do livro “Escolha o Seu Sonho”, que reúne 46 crônicas, dá bem a dimensão da qualidade de sua escrita. A crônica chama-se “Liberdade”, que reproduzo na íntegra:

“Deve existir nos homens um sentimento profundo que corresponde a essa palavra LIBERDADE, pois sobre ela se têm escrito poemas e hinos, a ela se tem até morrido com alegria e felicidade.

Diz-se que o homem nasceu livre, que a liberdade de cada um acaba onde começa a liberdade de outrem; que onde não há liberdade não há pátria; que a morte é preferível à falta de liberdade; que renunciar à liberdade é renunciar à própria condição humana; que a liberdade é o maior bem do mundo; que a liberdade é o oposto à fatalidade e à escravidão; nossos bisavós gritavam “Liberdade, Igualdade e Fraternidade!”. Nossos avós cantaram: “Ou ficar a Pátria livre ou morrer pelo Brasil!”; nossos pais pediam: “Liberdade! Liberdade! – abre as asas sobre nós”, e nós recordamos todos os dias que “o sol da liberdade em raios fúlgidos – brilhou no céu da Pátria…” – em certo instante.

Somos, pois criaturas nutridas de liberdade há muito tempo, com disposições de cantá-la, amá-la, combater e certamente morrer por ela.

Ser livre – como diria o famoso conselheiro… – é não ser escravo; é agir segundo a nossa cabeça e o nosso coração, mesmo tendo que partir esse coração e essa cabeça para encontrar um caminho… Enfim, ser livre é ser responsável, é repudiar a condição de autônomo e de teleguiado – é proclamar o triunfo luminoso do espírito. (Supondo que seja isso.)

Ser livre é ir mais além: é buscar outro espaço, outras dimensões, é ampliar a órbita da vida. É não estar acorrentado. É não viver obrigatoriamente entre quatro paredes.

Por isso, os meninos atiram pedras e soltam papagaios. A pedra inocentemente vai até onde o sono das crianças deseja ir. (Às vezes, é certo, quebra alguma coisa, no seu percurso…).

Os papagaios vão pelos ares até onde os meninos de outrora (muito de outrora!…) não acreditavam que se pudesse chegar tão simplesmente, com um fio de linha e um pouco de vento!…

Acontece, porém, que um menino, para empinar um papagaio, esqueceu-se da fatalidade dos fios elétricos e perdeu a vida.

E os loucos que sonharam sair de seus pavilhões, usando a fórmula do incêndio para chegarem à liberdade, morreram queimados, com o mapa da Liberdade nas mãos!…

São essas coisas tristes que contornam sombriamente aquele sentimento luminoso da LIBERDADE. Para alcançá-la estamos todos os dias expostos à morte. E os tímidos preferem ficar onde estão, preferem mesmo prender melhor suas correntes e não pensar em assunto tão ingrato.

Mas os sonhadores vão para a frente, soltando seus papagaios, morrendo nos seus incêndios, como as crianças e os loucos. E cantando aqueles hinos que falam de asas, de raios fúlgidos – linguagem de seus antepassados, estranha linguagem humana, nestes andaimes dos construtores de Babel…”

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Haicais de Quintana

Foto: livre

O mestre Quintana dominava como ninguém o coloquial, sem cair no simplismo e na superficialidade. Cá prá nós, isso não é fácil. Escrever fácil é difícil prá burro (com o perdão do trocadilho).

No livro de Haicais,organizado por Ronald Polito, da Editora Globo, Quintana exercita seu estilo com maestria. Dizem que esses poemas foram influenciados pela leitura de Jorge Luis Borges. Dou-me o direito da dúvida. Por mais que procure, não acho Borges em Quintana. E vice-versa.

Há, também, quem atribua à escrita de Quintana "ecos simbolistas". Também sou cético nesse sentido. Se existe nostalgia no que escreve, também existe muito humor. Se me fosse pedido para enquadrar (olha que absurdo) Quintana numa escola literária, não hesitaria: "pertence à escola quintaniana".

O escritor, falecido em 5 de maio de 1994, definiu com extremo bom-humor a receita da simplicidade: "Quando alguém pergunta a um autor o que este quis dizer, é porque um dos dois é burro".

Reproduzo, abaixo, alguns dos haicais do livro de Quintana. Leitura saborosa.

Diário de Viagem
O poeta foi visto por um rio,
por uma árvore,
por uma estrada...

Verão
Quando os sapato ringem,
- quem diria?
São os teus pés que estão cantando!

Os Grilos
Eles cantam a noite inteira!
São sabias?
Os gripos são os poetas mortos...

S.O.S.

O poema é uma garrafa de náufrago jogada ao mar.
Quem a encontra
Salva-se a si mesmo...

Arte Poética

Esses poetas que tudo dizem
Nada conseguem dizer:
Estão fazendo apenas relatórios...

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Yesterday: a história da canção



Inicialmente, Yesterday se chamava "Scrambled eggs". A canção foi composta ao piano, perto da cama de Paul McCarteney, na casa dos Asher, em Wimpole Street. "Ela veio completa", revelou o ex-Beatle, tempos depois. Isso, possivelmente, no início de 1965.

A letra foi escrita em meados de 1965, quando Paul tirava férias em Portugal, na casa de verão do guitarrista da banda Shadows, Bruce Welch. Para finalizar a letra ele pegou um violão emprestado do amigo, enquanto se deslocava de carro do aeroporto de Lisboa para Albufeira.

A canção foi gravada no estúdio Abbey Road, dois dias depois de Paul retornar de Portugal. Ela fez parte do álbum Help!, lançado no Reino Unido em agosto de 1965. Nos EUA, o lançamento ocorreu em 13 de setembro de 1966. Transformou-se numa das canções mais executadas em todos os tempos. Um marco do cancioneiro popular. Enfim, um clássico que embala gerações.

As informações fazem parte do livro "The Beatles - a história por trás de todas as canções".


Abaixo uma tradução da letra desta canção.


Yesterday (Ontem)


Ontem
Todos os meus problemas pareciam tão distantes
Agora parece que eles vieram pra ficar
Oh, eu acredito
No passado

De repente
Não sou metade do homem que costumava ser
Existe uma sombra pairando sobre mim

Oh ontem
Veio de repente

Por que ela
Teve que ir eu não sei
Ela não me disse
Eu disse
Algo de errado e agora eu sinto falta
Do ontem

Ontem
O amor era um jogo tão fácil de se jogar
Agora eu preciso de um lugar pra me esconder
Oh eu acredito
No passado

Por que ela
Teve que ir eu não sei
Ela não me disse
Eu disse
Algo de errado e agora eu sinto falta
Do ontem

Ontem
O amor era um jogo tão fácil de se jogar
Agora eu preciso de um lugar pra me esconder
Oh eu acredito
No passado

the beatles - let it be



Uma música emblemática dos Beatles: Let It Be. Um dos grandes sucessos do grupo de rock mais popular do século XX. Influenciou gerações. Embora seja um clássico dos anos 60, não é datada. E é exatamente isso que diferencia uma obra comum de outra extraordinária. A história dessa música também é contada no livro de Steve Turner.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Livro enfoca a história por trás das músicas dos Beatles


Estou lendo um livro saboroso: “The Beatles - A História Por Trás de Todas as Canções”. O autor é o jornalista inglês Steve Turner. Trata-se de um trabalho de fôlego, que consumiu muita pesquisa. Foram dissecadas todas as 208 canções dos Beatles, que vai de 1962 até 1970, quando a maior banda de rock de todos os tempos foi dissolvida. Leitura imperdível para todo beatlemaníaco e para quem gosta de música.

Encontrei uma resenha do livro muito boa, divulgada pela Agência Estado, que foi reproduzida pelo jornal “A Tarde OnLine”, de Salvador (BA), em 7 de dezembro de 2009. Quem tiver interesse na leitura do texto é só acessar o link: http://www.atarde.com.br/cultura/noticia.jsf?id=1303706

domingo, 2 de janeiro de 2011

Borges: o escritor e a eternidade


Para começar o ano um poema de Jorge Luis Borges, que integra o livro "Nova Antologia Pessoal", da Editora Difel (1982). Chama-se "O Instante" e é uma reflexão sobre a passagem do tempo, sobre a existência, a velhice e a eternidade. Enfim, questionamentos que fazemos nessa época do ano. O aclamado escritor argentino discorre também sobre passado, presente e futuro. Com a peculiar erudição de sempre.

O Instante

Onde estarão os séculos, o sonho
de espadas, o que os tártaros sonharam,
onde os sólidos muros que aplanaram,
onde a árvore de Adão e o outro Lenho?
O presente está só. Mas a memória
erige o tempo. Sucessão e engano,
esta é a rotina do relógio. O ano
jamais é menos vão que a vã história.
Entre a alba e a noite há um abismo
de agonias, de luzes, de cuidados;
o rosto que se vê nos desgastados
e noturnos espelhos não é o mesmo.
O hoje fugaz é tênue e é eterno;
nem outro Céu nem outro Inferno esperes.

A Virada e o Amanhã


Dois mil e dez se foi. Viramos mais um folhinha do calendário. Agora, encaremos 2011 com esperança renovada. Afinal, o otimismo deve dar a tônica em nossas ações. Do contrário, seremos como que paralisados. Seguir, seguir em frente. Essa é a sina. Para retratar momentos como o atual, sempre me vem à mente a música Amanhã, do Guilherme Arantes, que reproduzo a seguir:

Amanhã

Guilherme Arantes
Composição: Guilherme Arantes

Amanhã!
Será um lindo dia
Da mais louca alegria
Que se possa imaginar
Amanhã!
Redobrada a força
Prá cima que não cessa
Há de vingar
Amanhã!
Mais nenhum mistério
Acima do ilusório
O astro rei vai brilhar
Amanhã!
A luminosidade
Alheia a qualquer vontade
Há de imperar!
Há de imperar!
Amanhã!
Está toda a esperança
Por menor que pareça
Existe e é prá vicejar
Amanhã!
Apesar de hoje
Será a estrada que surge
Prá se trilhar
Amanhã!
Mesmo que uns não queiram
Será de outros que esperam
Ver o dia raiar
Amanhã!
Ódios aplacados
Temores abrandados
Será pleno!
Será pleno!