domingo, 27 de abril de 2014

A Extraordinária Ascensão de Obama


Para nós, brasileiros, este é um ano de Copa e Eleição. Os dois assuntos vão prender a atenção do nosso povo. Tanto um quanto o outro desperta paixões. E aí residem grandes dramas humanos. Quando nos detemos sobre a análise desses episódios nos damos conta da complexidade das relações sociais que os envolvem. Elas são fruto de vontade, de luta, de estratégias, de covardias, de trapaças, de espertezas, de heroísmos, com pitadas do imponderável: sorte e azar.

Dentro dessa lógica, já imaginou, por exemplo, ser transportado para uma realidade paralela, como um observador privilegiado dos bastidores da política? Como seria o desenho da arena onde se joga o jogo do poder? Como as peças são movidas para atingir os objetivos? As regras do jogo são respeitadas e obedecidas? Como os personagens principais e os coadjuvantes se comportam? É verdade que os jogadores invadem pântanos onde a ética não brota?

Você terá a nítida impressão de que obteve as respostas a essas perguntas depois da leitura  do livro "Virada no Jogo - Como Obama Chegou à Casa Branca", dos jornalistas John Heilemann e Mark Halperin. A obra reconstituiu as trilhas que conduziram o primeiro afro-americano a liderar, em 2008, a nação mais poderosa do globo. A pesquisa envolveu a realização de centenas de entrevistas exclusivas. Elas só aconteceram  devido ao acesso privilegiado que os autores desfrutam nos meios políticos.

O resultado é uma sucessão de fatos dignos da montagem de um sofisticado quebra-cabeça, Os autores dissecam acontecimentos, episódios e facetas que revelam a cultura que plasmou a cena política de um povo que se desenvolveu sob o manto do jogo democrático. As idiossincrasias dos candidatos são nuançadas com toques de mestre, bem como as estratégias de campanha, tanto do lado Democrata quanto dos Republicanos.


O livro é dividido em três partes. A primeira, que é a mais longa (vai até a Pág. 261) narra a impressionante trajetória de Obama, desde o momento em que foi induzido a entrar na disputa, passando por suas ascensão meteórica que o levou ao triunfo, nas fileiras do Partido Democrata. Ele, literalmente, atropelou a sua poderosa oponente, Hillary Clinton, que aparentava ser imbatível. O pugilato dos dois é digno de um filme de suspense (inclusive, o texto do livro serviu de base para um filme produzido pela HBO).

A verdade é que Obama e Hillary protagonizaram  uma história recheada de dramas, comédias, suspenses, com direito a reviravoltas espetaculares. Ao longo do livro,  o leitor é conduzido  a um cabedal de revelações surpreendentes. A um grau em que se sente como se estivesse nas salas atapetadas de um comitê eleitoral envolto num nível máximo de adrenalina. Não sem razão, a eleição de 2008 foi considerada uma das mais acirradas da história dos EUA.

A investigação dos autores se concentra em alguns dos pontos nevrálgicos que revelam a "virada do jogo" eleitoral que permitiu a vitória de Obama. Nesse sentido, a obra responde, basicamente, as seguintes questões: Por que a família Clinton caiu em desgraça entre os democratas? Como Obama saiu da condição de coadjuvante para ator principal na campanha? Por que John McCain, sem recursos, numa campanha de guerrilha, conseguiu ser indicado pelo Partido Republicano? Por que o republicano optou pela desconhecida Sarah Palin para ser sua companheira de chapa? E, por fim, como Obama aplainou o terreno que o levou à presidência.

A obra também relembra episódios grotescos, chocantes e, até mesmo, picantes. Um dos mais emblemáticos é o caso  do pré-candidato John Edwards. Ele teve  um caso extra-conjugal enquanto a sua esposa se restabelecia de um câncer. Por essas e outras, a publicação The Economist classificou o livro como "abusado, instigante, indiscreto, estarrecedor e compulsivo...". Os autores, após exaustivas pesquisas, conseguiram aprofundar nas revelações feitas por tablóides sensacionalistas. E chegaram a uma conclusão definitiva: era tudo verdade!

Ficha Técnica
Título: Virada no Jogo - Como Obama Chegou à Casa Branca
Autores: John Heilemann e Mark Halperin
Gênero: Reportagem/História
Editora: Intrínseca
Ano: 2011
Páginas: 464

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Ele Recolhia no Lixo Pepitas de Ouro


A vida é um amontoado de cacos do cotidiano. Como produzir boa literatura a partir dessa matéria informe? Deve-se proceder como o garimpeiro que lava o cascalho na esperança de retirar pepitas de ouro. Poucos conseguem. Mas é do trivial que sai o extraordinário. Essas lições foram muito bem apreendidas (e ensinadas) pelo mestre do cotidiano: o jornalista, dramaturgo, romancista, contista e cronista Nelson Rodrigues, o pernambucano mais carioca entre os nossos escritores.

Dizer que Nelson foi um gênio é "óbvio ululante". E este é apenas um entre centenas de bordões de sua autoria que ficaram nacionalmente conhecidos. A sua popularidade se fez seja como cronista de costumes ("A Vida Como Ela É", é uma prova inconteste disso), seja como aclamado cronista esportivo. E se ainda fosse pouco, é considerado (e, diga-se, com muito justiça) como o nosso maior dramaturgo. E mais: muitas de suas peças de teatro foram transpostas para o cinema e obtiveram grande sucesso.

Nelson é daqueles escritores que sabiam recolher do meio das banalidades difusas as pérolas para compor a sua reluzente literatura. É o caso da série de contos "A Vida Como Ela É", publicada no jornal Última Hora, no período de 1951 a 1961, que obteve grande sucesso de público. Os temas abordados giravam em torno do ciúme, fidelidade, vingança, amor e ódio. Tocavam fundo na sociedade conservadora que preferia ver (ou seria ocultar?) essas questões debaixo do tapete.


O autor não deixava pedra sobre pedra. Com sua apurada lente de aumento remexia o lixo da sociedade. Os casos que desnudava eram motivo de escândalo. Os seus personagens (reais) não gostavam de ser retratados na ficção. O espelho era muito cruel. Mas sejamos francos. A sociedade que Nelson captou é atemporal. As chamadas "taras" continuam a habitar o nosso cotidiano, embora pareçam provocar menos escândalos.

Nelson morreu em 1980. Ele nos deixou uma obra consistente. Foram 17 peças, nove romances e centenas de contos e crônicas. A propósito de "A Vida Como Ela É" o autor teceu o seguinte comentário: "Nego a qualquer um o direito de virar as costas à dor alheia. Precisamos ter, continuamente, a consciência, o sentimento dessa dor". Como seres de carne e osso, a tal ponto que poderíamos tropeçar com eles pela rua, os personagens de Nelson são "humanos, demasiadamente humanos".


A obra "O Marido Humilhado", que acabei de ler, é uma compilação de 20 contos da série "A Vida Como Ela É". São apresentados pela Editora Agir como "histórias inéditas" (truque de marketing?). O meu exemplar faz parte da série PocketOuro (de bolso). Trata-se de uma seleção bastante representativa do estilo do autor. Um incansável observador das cenas urbanas cariocas, com aquele olhar de buraco de fechadura, sumariamente "bocagiano". Um perfeito "Anjo Pornográfico".

Ficha Técnica
Título: O Marido Humilhado - História Inéditas da "Vida Como Ela É"
Autor: Nelson Rodrigues
Editora: Agir
Gênero: Contos
Páginas: 176
Ano: 2008

domingo, 20 de abril de 2014

Morangos Frescos e Vermelhos


Tenho um volume antigo do Círculo do Livro (quem ainda se lembra dele?) presumo que de 1984. Havia lido a obra há muitos anos. No final da década de 80 - talvez. A memória guardou pouco desse livro. Reteve o principal: linguagem poética, renovadora, poderosa. Poderia ser definida assim: uma voz de uma geração desesperada, sufocada, ansiosa por liberdade, alegria, beleza.

Com esses fiapos do tempo abri (e reli) "Morangos Mofados", do jornalista e escritor Caio Fernando Abreu, lançado em 1982.  O livro foi considerado, por boa parte da crítica, o melhor lançamento em prosa daquele ano. Faleceu em 1996, vítima de Aids. Mas a sua obra permaneceu. Hoje, continua muito citado, mas, infelizmente, pouco lido. Não deveria ser assim.

Em seu "Morangos Mofados" Caio tece narrativas curtas (contos) para relatar o "grito preso no ar" da juventude dos anos 70 e 80. Os seus personagens situam-se na faixa dos 20 a 30 anos. São garotos e garotas fissurados em sexo, drogas e, claro, música. A famosa trilogia "sex, drugs and rock & roll". Viviam situações-limite.

O ambiente claustrofóbico é comum a todos os contos. Mas, por mais desespero que demonstrem, todos batalham pela vida. O ar rarefeito que aquela geração experimentou não conseguiu sufocá-la. Pouco importa que isso tenha redundado na busca frenética por válvulas de escape. A música, as drogas, representam justamente isso. É como se dissessem: "Eu não quero esta realidade. Dou-me ao direito de criar outra".


O conto "Caixinha de música" possui todos esses elementos poéticos/dramáticos. Começa assim: " Como se estivesse com a cabeça inteira dentro d'água e alguém começasse a tocar realejo na beira do rio. Pequenas bolhas de som explodiam sem choque contra seus ouvidos, nota após nota, até formar-se também por dentro aquela melodia tão remota e lenta que parecia vir não mais da margem, mas do fundo".


Vem lá do "eu profundo" a angústia de Caio Fernando Abreu. Ele corta a própria carne para produzir a sua literatura. Fala da sua condição homossexual sem incorrer em simplismos. Denuncia, livre do engajamento militante (pois resvalaria no esquematismo) a exclusão das minorias - em especial, dos gays. Ao contrapor o amor e a violência desnuda uma sociedade arcaica, moralista e opressiva.

O conto que dá título ao livro "Morangos Mofados" é composto como uma peça musical. Tudo a ver pois é uma referência direta à famosa canção de Lennon e McCartney (Strawberry field forever). À noite, o personagem vomita pedaços de morangos verdes mofados. Mas, amanhece um novo dia. Ele sobe ao terraço. Coloca-se diante de um dilema: pular e cometer suicídio ou plantar morangos frescos e vermelhos no canteiro. Sim: opta pela segunda alternativa. A vida vence, Caio continua vivo com sua obra perene.

Ficha Técnica
Título: Morangos Mofados
Autor: Caio Fernando Abreu
Gênero: Contos
Editora: Círculo do Livro
Ano: a Editora não informa
Páginas: 174