sábado, 23 de março de 2013

Fresta de Luz



Cedo se vão as rosas d’alegria...
Cedo o outono se fana: o inverno vem.
Cedo me foge a suave melodia
Que aos ouvidos meus doce sonido tem
!”.
Katherine Manisfield

“Não posso fraquejar, tenho filhos para criar”. Deitada na cama, a sentença era-lhe soprada. Por quem? Não sabia. Apenas tinha consciência que a ouvia. Por isso, agarrava-a. Sentia-se como o náufrago que tem diante de si restos de madeira na imensidão do oceano azul. Repetia, balbuciando, semiconsciente: “Não posso fraquejar...”

Agora, tinha a impressão nítida da solidão. Era como percorrer uma estrada longa e deserta. O sol a pino, a boca seca, o cansaço. Mais mental que físico. Onde iria chegar a pé? Essa estrada terá fim? As ideias embaralhavam. Era difícil concatená-las.

Não sentia mais chão sob os pés. Porém, não queria se entregar àquele estado onírico. Necessitava manter-se lúcida. Mas onde buscar forças? O mundo exterior parecia etéreo. Foi quando sentiu que afundava. Num lago? Não sabia. Sentia dificuldade  em  respirar. Como retornar à superfície? Tratava-se de um pesadelo?

Tudo à sua volta soava confuso. Olhou para o lado. Identificou o criado mudo. Levou a mão até ele. Teve a impressão de que, preguiçosamente, subia uma leve nuvem de pó. Os seus olhos negros tentavam divisar o que se encontrava no seu derredor. Passou a mão pelos cabelos levemente encaracolados, macios. Despertou.

A sua cabeço doía. O rosto lívido, a pupila levemente dilatada. Repetiu novamente para si: “Não posso fraquejar, tenho filhos para criar”. Foi quando os seus músculos começaram a distender-se. Conseguiu divisar o teto. Fixou um ponto: uma ínfima fissura no alto da parede, teias de aranha. Em seguida, voltou a cabeça para o lado: o abajur desligado.

Sentia as mãos trêmulas. Fixou a janela. Uma pequena fresta de luz teimava esquivar-se e esgueirar-se por entre a cortina com blackout. Aquela delgada réstia encheu de vida o espaço antes claustrofóbico. Preparou-se mentalmente: ia levantar.

quinta-feira, 21 de março de 2013

Dostoiévski e a opressão da mulher




Acabo de folhear as últimas páginas de um livro oportuno para o mês de março, quando se comemora o Dia Internacional da Mulher. O 8 de Março, como todos sabemos, se propõe a denunciar a opressão e a violência contra esse gênero. É bem verdade que, em termos de conquistas, o século XX foi pródigo nesse terreno. Foi o período de (re)afirmação da causa feminina (ou feminista). No século XXI, caminha-se a passos firmes no sentido da tão sonhada igualdade de direitos (pelo menos no Ocidente).

Recuando no tempo, o que dizer do século XIX? Até então, a mulher não tinha vez, nem voz. Eram raras as escritoras e artistas. Mas justamente nesse século um gigante das letras solidarizou-se com esta causa. Escreveu uma peça literária de expressiva agudeza. Nela denuncia o regime despótico a que as mulheres eram submetidas. O autor em questão é o russo, nascido em Moscou (1821-1881), Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski. A novela é uma pequena obra-prima. Intitula-se: “Uma Criatura Dócil”.

Dostoiévski retrata a vida de um casal. Com o seu gênio inventivo, escusa-se a recorrer a uma narração convencional, linear. Mais sugere que descreve. Utiliza-se de uma espécie de diário confessional, repleto de trilhas tortuosas, reentrâncias, guinadas e solavancos. Com isso, o leitor é conduzido a tirar suas próprias conclusões a partir do depoimento do marido. Percebe-se que se trata de um ser mesquinho, avaro, truculento, diabólico, às vezes, misantropo.

As visões e opiniões desse personagem são parciais, fruto de uma mente doentia. Mas ele, no meio de sua loucura e delírio, deixa-se retratar por inteiro. Cai o véu de sua personalidade. Aflora e transparece o egoísmo, canalhice, petulância e sabujice. Vem à tona a crueldade dos pequenos gestos, da incomunicabilidade, o despotismo de uma relação dúbia. Utiliza-se da força (em todos os sentidos, inclusive, da econômica), para fazer prevalecer as suas idiossincrasias.

Paralelamente, emerge a figura frágil, solitária, incompreendida, meiga, sem nome, heroína trágica, que é a esposa, de apenas 16 anos, que dá título à novela. Ao retratar esta personagem sob a ótica de seu carrasco, Dostoiévski engrandece a sua “Criatura Dócil”. Confere à história o status de tragédia urbana, realista, mas com altas doses de psicologia, marca registrada do escritor russo.

Esta pequena joia rara é a peça literária mais contundente escrita no século XIX contra a dominação da mulher. Trata-se de um olhar pungente sobre o universo feminino. Não sem razão, chegou a ser lembrada como “uma das mais vigorosas novelas do desespero na literatura mundial”. O francês André Gide foi taxativo. Qualificou-a de “uma coisa estupenda”. Dostoiévski foi feminista quase um século antes do feminismo.