segunda-feira, 5 de maio de 2014

Gabo quase passou fome para escrever Cem Anos de Solidão


O aclamado Cem anos de solidão é um monumento literário. Bem sei, isto não é nenhuma novidade. Ouso dizer que é uma das maiores obras literárias do século XX, ao lado de Ulisses, de James Joyce, A montanha mágica, de Thomas Mann, Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, As vinhas da ira, de John Steinbeck, e Por quem os sinos dobram, de Ernest Hemingway. Do ponto de vista da aceitação popular, Cem anos de solidão vendeu mais do que todas estas obras reunidas.

Aclamado nos quatro cantos do globo, existem os partidários deste romance que o consideram o mais importante surgido em língua espanhola desde Dom quixote, de Miguel de Cervantes. Mas uma coisa é certa: o livro do colombiano, além de ter alçado a literatura de língua espanhola à condição de queridinha em todo o mundo, obteve marcas espetaculares. Em 2007, estima-se que havia vendido mais de 50 milhões de exemplares.

Uma vez, no seu aniversário de 80 anos, que coincidiu com os 40 anos de lançamento da sua obra prima, e 25 anos que havia recebido o Prêmio Nobel de Literatura, García Márquez jactou-se: "Os leitores de Cem anos de solidão formam uma comunidade que, se vivesse num mesmo pedaço de terra, seriam dos vinte países mais povoados do mundo". Ele estava sendo homenageado em Cartagena das Índias, na Colômbia, sua terra natal, durante a abertura do IV Congresso Internacional da Língua Espanhola.

Era o dia 26 de março de 2007. Para celebrar todos estes acontecimentos foi lançada mais uma edição do livro mítico, que tornou o chamado "realismo mágico" uma febre mundial. A obra havia sido impressa em capa dura sob a chancela da Real Academia Espanhola e da Associação das Academias de Língua Espanhola. Tiragem desta edição: um milhão de exemplares.

Ao discursar na abertura do conclave, García Márquez diante deste feito assombroso disse o seguinte: "Nem no mais delirante dos meus sonhos, nos dias que escrevia Cem anos de solidão, cheguei a imaginar que poderia ver uma edição de um milhão de exemplares". O livro, também, já havia sido traduzido para mais de 40 idiomas.

Nessa ocasião, diante de uma platéia embevecida por suas palavras, Gabo fez algumas confissões que envolveram o seu processo criativo. Ele revelou que durante o período em que estava redigindo o livro deixou os seus empregos, ou seja, o seu ganha pão. Dedicou-se exclusivamente para a sua composição, que lhe consumia seis horas por dia, sete dias por semana. Isso se repetiu durante quatorze meses.

O escritor comentou que ao longo desse tempo em que se dedicou integralmente ao livro não sabe como não passou fome. Não ganhou um único centavo. A situação chegou a um ponto tal que ele e Mercedes (sua mulher), apelaram para uma loja de penhor. Foram avaliar as jóias (diamantes, rubis e esmeraldas) que a esposa havia recebido como herança de seus familiares. Depois de examinar com olho mágico, o especialista concluiu: "Tudo isso é vidro puro". Além das jóias, a falta de dinheiro levou o casal a vender o automóvel da família e, depois, até uma batedeira de bolo.

Outra situação de grande aperto e vicissitude, contou Gabo, foi o dia em que ele e a esposa procuraram os Correios da Cidade do México, onde viviam, no início de agosto de 1966, para despachar os originais do livro para o seu editor em Buenos Aires, Francisco (Paco) Porrúa. O pacote continha 590 laudas, segundo disse "em papel ordinário", escritas a máquina em espaço duplo.

O funcionário dos Correios colocou o pacote na balança e sentenciou, impassível: "São oitenta e dois pesos". Mercedes e Gabo se entreolharam apreensivos. Ela apalpou a bolsa, procurou todas as notas e moedas, e concluiu: "Só temos cinquenta e três". Resolveram o problema pela fórmula salamônica. Dividiram o pacote em duas partes e despacharam metade. Mas por um descuido, encaminharam no lugar da primeira, a segunda parte do livro.

Paco Porrúa, comentou Gabo, lá em Buenos Aires, ficou tão ansioso para ler a primeira metade que providenciou logo na sequência o adiantamento. Assim, o escritor enviou para a capital argentina a outra parte que faltava. O livro foi publicado pela Editorial Sudamerica, em maio de 1967, com uma tiragem inicial de 8 mil exemplares. A edição se esgotou em 15 dias.


No Brasil, quem primeiro publicou Cem anos de solidão foi a Editora Sabiá, em 1968. Ela era comandada pelos escritores Fernando Sabino e Rubem Braga. O revisor do texto foi o jovem, então com 22 anos, Júlio Bierrenbach, que depois viria a ser um alto executivo da Sul América Seguros. Júlio confessou que achou o livro chatíssimo e lançou sobre ele uma praga: não venderia mais que 5 mil exemplares. Rubem Braga tinha certeza que seria um sucesso. Mandou imprimir mais de 60 mil exemplares, o que era uma loucura para a época. Por vários meses o livro figurou na lista dos mais vendidos no Brasil.

Não tenho nenhum exemplar da edição da Sabiá, infelizmente. A mais antiga que tenho é uma da Editora Record/Altaya, da coleção em capa dura, mas em papel jornal, chamada Mestres da Literatura Contemporânea, de 1995, com tradução de Eliane Zagury. Pouco anos depois, adquiri da Biblioteca da Folha uma nova edição, também em capa dura, e também com tradução de Eliane Zagury, de 2003.

Sobretudo, tive a sorte de aquirir a edição comemorativa, em espanhol, publicada pela Real Academia Española, Cien años de soledad, de 2007. Justamente aquela de que nos falou Gabo. Ou seja, sou o feliz proprietário de um dos exemplares daquela fornada de 1 milhão de exemplares. Posso assim me considerar um habitante da Gabolândia, país habitado por mais de 50 milhões de leitores, que não possuem medo da Solidão posto que estão sempre com um livro na mão.

domingo, 4 de maio de 2014

A Oratória Mágica do Escritor Ensimesmado



Tenho em mãos, certamente, o último livro publicado por Gabriel García Márquez. Diferente do que se possa supor, não é um romance, muito menos livro de contos, tampouco de reportagens. É uma obra que reproduz os seus discursos. O primeiro, proferido aos 17 anos, em 1944, e o último, quando o autor comemorou 80 anos, em março de 2007.

Ironicamente, o escritor de algumas das obras mais importantes do século XX, por diversas ocasiões, revelou que tinha prometido a si mesmo não fazer, jamais, duas coisas: receber um prêmio e fazer um discurso. Gabo, como era carinhosamente conhecido, tinha pavor de plateias, tanto quanto medo de avião. A vida obrigou-o a superar tudo isso.

Em 8 de dezembro de 1982, em Estocolmo, na Suécia, lá estava o nosso intrépido autor, com uma indumentária típica do Caribe, diante de uma audiência (incluindo o rei da Suécia) em traje de gala (leia-se: smoking) para receber a maior honraria que um escritor pode aspirar: o Prêmio Nobel de Literatura. Na história, poucos recusaram uma homenagem como essa (Jean Paul Sartre compõe esta lista restrita).

Pois bem, o escritor travestido de pescador, proferiu para aquela platéia entusiástica, um discurso apoteótico, que repercutiu em todo o mundo. O título: A Solidão da América Latina, fazia alusão ao seu livro mais famoso: Cem anos de solidão. Gabo escandiu as suas últimas palavras com uma advertência sobre a necessidade de uma nova e arrasadora utopia para a vida.


De maneira veemente, defendeu a liberdade, a verdade, e o amor, como condição para que "seja possível a felicidade, e onde as estirpes condenadas a cem anos de solidão tenham, enfim e para sempre, uma segunda oportunidade sobre a terra". Nada mau para quem se dizia avesso a um microfone e para quem considerava um grupo de 30 pessoas uma multidão.

Esse pronunciamento do escritor reverberou pelos cinco continentes. Lembro-me que quando colei grau na UFG, em jornalismo, no dia 6 de agosto de 1983, foi nele que me inspirei para fazer o meu discurso, pois havia sido escolhido para falar em nome dos estudantes do antigo ICHL (na época as formaturas eram conjuntas). Adverti sobre a ameaça nuclear (era aniversário do lançamento da bomba sobre Hiroshima), critiquei as ditaduras na América Latina e a falta de liberdades no Brasil. Faltou-me, apenas, o gênio de Gabo.

Mas voltando ao livro, ele reproduz 21 discursos de García Márquez. Invariavelmente, em todos os seus textos, o autor sempre deixa transbordar as suas paixões: pela palavra, pela literatura, pelo jornalismo e pela sua terra natal que, segundo diz, não é geográfica, é cultural. Nesse sentido, gostava de argumentar, deveria compreender desde o Sul dos EUA até o Norte do Brasil.

"Eu não vim fazer um discurso" é o título da obra. Ela foi organizada pelo amigo de Gabo, Cirstóbal Pera. No Brasil, foi vertida para o português por outro amigo do escritor, Eric Nepomuceno. Cristóbal informa no Posfácio que trabalhou na seleção dos textos diretamente com García Márquez. Inclusive, GGM chegou a sugerir a colocação de títulos em alguns discursos. É muito provável que a doença de Gabo tenha se agravado logo após esta data, comprometendo assim a sua prodigiosa memória.

A leitura atenta dos discursos, num arco que compreende mais de seis décadas de vida do autor, revela o amadurecimento literário de Gabo. Como assinala Cristóbal, "neles não se encontram apenas os temas centrais de sua literatura, mas também rastros que ajudam a compreender mais profundamente a sua vida". Serve, assim, como uma espécie de testamento literário do genial autor do mítico "Cem anos de solidão", obra que vendeu mais de 50 milhões de exemplares.

Em tempo: Sobre Cem anos de solidão, o próprio autor admite que a sua publicação daria um livro à parte. Não vamos fazer um livro, mas um Post exclusivo para tratar de algumas curiosidades que o envolvem. Aguarde.

Ficha Técnica
Título: Eu Não Vim Fazer um Discurso
Autor: Gabriel García Márquez
Editora: Record
Gênero: Oratória
Ano: 2011
Páginas: 128