segunda-feira, 5 de maio de 2014

Gabo quase passou fome para escrever Cem Anos de Solidão


O aclamado Cem anos de solidão é um monumento literário. Bem sei, isto não é nenhuma novidade. Ouso dizer que é uma das maiores obras literárias do século XX, ao lado de Ulisses, de James Joyce, A montanha mágica, de Thomas Mann, Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, As vinhas da ira, de John Steinbeck, e Por quem os sinos dobram, de Ernest Hemingway. Do ponto de vista da aceitação popular, Cem anos de solidão vendeu mais do que todas estas obras reunidas.

Aclamado nos quatro cantos do globo, existem os partidários deste romance que o consideram o mais importante surgido em língua espanhola desde Dom quixote, de Miguel de Cervantes. Mas uma coisa é certa: o livro do colombiano, além de ter alçado a literatura de língua espanhola à condição de queridinha em todo o mundo, obteve marcas espetaculares. Em 2007, estima-se que havia vendido mais de 50 milhões de exemplares.

Uma vez, no seu aniversário de 80 anos, que coincidiu com os 40 anos de lançamento da sua obra prima, e 25 anos que havia recebido o Prêmio Nobel de Literatura, García Márquez jactou-se: "Os leitores de Cem anos de solidão formam uma comunidade que, se vivesse num mesmo pedaço de terra, seriam dos vinte países mais povoados do mundo". Ele estava sendo homenageado em Cartagena das Índias, na Colômbia, sua terra natal, durante a abertura do IV Congresso Internacional da Língua Espanhola.

Era o dia 26 de março de 2007. Para celebrar todos estes acontecimentos foi lançada mais uma edição do livro mítico, que tornou o chamado "realismo mágico" uma febre mundial. A obra havia sido impressa em capa dura sob a chancela da Real Academia Espanhola e da Associação das Academias de Língua Espanhola. Tiragem desta edição: um milhão de exemplares.

Ao discursar na abertura do conclave, García Márquez diante deste feito assombroso disse o seguinte: "Nem no mais delirante dos meus sonhos, nos dias que escrevia Cem anos de solidão, cheguei a imaginar que poderia ver uma edição de um milhão de exemplares". O livro, também, já havia sido traduzido para mais de 40 idiomas.

Nessa ocasião, diante de uma platéia embevecida por suas palavras, Gabo fez algumas confissões que envolveram o seu processo criativo. Ele revelou que durante o período em que estava redigindo o livro deixou os seus empregos, ou seja, o seu ganha pão. Dedicou-se exclusivamente para a sua composição, que lhe consumia seis horas por dia, sete dias por semana. Isso se repetiu durante quatorze meses.

O escritor comentou que ao longo desse tempo em que se dedicou integralmente ao livro não sabe como não passou fome. Não ganhou um único centavo. A situação chegou a um ponto tal que ele e Mercedes (sua mulher), apelaram para uma loja de penhor. Foram avaliar as jóias (diamantes, rubis e esmeraldas) que a esposa havia recebido como herança de seus familiares. Depois de examinar com olho mágico, o especialista concluiu: "Tudo isso é vidro puro". Além das jóias, a falta de dinheiro levou o casal a vender o automóvel da família e, depois, até uma batedeira de bolo.

Outra situação de grande aperto e vicissitude, contou Gabo, foi o dia em que ele e a esposa procuraram os Correios da Cidade do México, onde viviam, no início de agosto de 1966, para despachar os originais do livro para o seu editor em Buenos Aires, Francisco (Paco) Porrúa. O pacote continha 590 laudas, segundo disse "em papel ordinário", escritas a máquina em espaço duplo.

O funcionário dos Correios colocou o pacote na balança e sentenciou, impassível: "São oitenta e dois pesos". Mercedes e Gabo se entreolharam apreensivos. Ela apalpou a bolsa, procurou todas as notas e moedas, e concluiu: "Só temos cinquenta e três". Resolveram o problema pela fórmula salamônica. Dividiram o pacote em duas partes e despacharam metade. Mas por um descuido, encaminharam no lugar da primeira, a segunda parte do livro.

Paco Porrúa, comentou Gabo, lá em Buenos Aires, ficou tão ansioso para ler a primeira metade que providenciou logo na sequência o adiantamento. Assim, o escritor enviou para a capital argentina a outra parte que faltava. O livro foi publicado pela Editorial Sudamerica, em maio de 1967, com uma tiragem inicial de 8 mil exemplares. A edição se esgotou em 15 dias.


No Brasil, quem primeiro publicou Cem anos de solidão foi a Editora Sabiá, em 1968. Ela era comandada pelos escritores Fernando Sabino e Rubem Braga. O revisor do texto foi o jovem, então com 22 anos, Júlio Bierrenbach, que depois viria a ser um alto executivo da Sul América Seguros. Júlio confessou que achou o livro chatíssimo e lançou sobre ele uma praga: não venderia mais que 5 mil exemplares. Rubem Braga tinha certeza que seria um sucesso. Mandou imprimir mais de 60 mil exemplares, o que era uma loucura para a época. Por vários meses o livro figurou na lista dos mais vendidos no Brasil.

Não tenho nenhum exemplar da edição da Sabiá, infelizmente. A mais antiga que tenho é uma da Editora Record/Altaya, da coleção em capa dura, mas em papel jornal, chamada Mestres da Literatura Contemporânea, de 1995, com tradução de Eliane Zagury. Pouco anos depois, adquiri da Biblioteca da Folha uma nova edição, também em capa dura, e também com tradução de Eliane Zagury, de 2003.

Sobretudo, tive a sorte de aquirir a edição comemorativa, em espanhol, publicada pela Real Academia Española, Cien años de soledad, de 2007. Justamente aquela de que nos falou Gabo. Ou seja, sou o feliz proprietário de um dos exemplares daquela fornada de 1 milhão de exemplares. Posso assim me considerar um habitante da Gabolândia, país habitado por mais de 50 milhões de leitores, que não possuem medo da Solidão posto que estão sempre com um livro na mão.

domingo, 4 de maio de 2014

A Oratória Mágica do Escritor Ensimesmado



Tenho em mãos, certamente, o último livro publicado por Gabriel García Márquez. Diferente do que se possa supor, não é um romance, muito menos livro de contos, tampouco de reportagens. É uma obra que reproduz os seus discursos. O primeiro, proferido aos 17 anos, em 1944, e o último, quando o autor comemorou 80 anos, em março de 2007.

Ironicamente, o escritor de algumas das obras mais importantes do século XX, por diversas ocasiões, revelou que tinha prometido a si mesmo não fazer, jamais, duas coisas: receber um prêmio e fazer um discurso. Gabo, como era carinhosamente conhecido, tinha pavor de plateias, tanto quanto medo de avião. A vida obrigou-o a superar tudo isso.

Em 8 de dezembro de 1982, em Estocolmo, na Suécia, lá estava o nosso intrépido autor, com uma indumentária típica do Caribe, diante de uma audiência (incluindo o rei da Suécia) em traje de gala (leia-se: smoking) para receber a maior honraria que um escritor pode aspirar: o Prêmio Nobel de Literatura. Na história, poucos recusaram uma homenagem como essa (Jean Paul Sartre compõe esta lista restrita).

Pois bem, o escritor travestido de pescador, proferiu para aquela platéia entusiástica, um discurso apoteótico, que repercutiu em todo o mundo. O título: A Solidão da América Latina, fazia alusão ao seu livro mais famoso: Cem anos de solidão. Gabo escandiu as suas últimas palavras com uma advertência sobre a necessidade de uma nova e arrasadora utopia para a vida.


De maneira veemente, defendeu a liberdade, a verdade, e o amor, como condição para que "seja possível a felicidade, e onde as estirpes condenadas a cem anos de solidão tenham, enfim e para sempre, uma segunda oportunidade sobre a terra". Nada mau para quem se dizia avesso a um microfone e para quem considerava um grupo de 30 pessoas uma multidão.

Esse pronunciamento do escritor reverberou pelos cinco continentes. Lembro-me que quando colei grau na UFG, em jornalismo, no dia 6 de agosto de 1983, foi nele que me inspirei para fazer o meu discurso, pois havia sido escolhido para falar em nome dos estudantes do antigo ICHL (na época as formaturas eram conjuntas). Adverti sobre a ameaça nuclear (era aniversário do lançamento da bomba sobre Hiroshima), critiquei as ditaduras na América Latina e a falta de liberdades no Brasil. Faltou-me, apenas, o gênio de Gabo.

Mas voltando ao livro, ele reproduz 21 discursos de García Márquez. Invariavelmente, em todos os seus textos, o autor sempre deixa transbordar as suas paixões: pela palavra, pela literatura, pelo jornalismo e pela sua terra natal que, segundo diz, não é geográfica, é cultural. Nesse sentido, gostava de argumentar, deveria compreender desde o Sul dos EUA até o Norte do Brasil.

"Eu não vim fazer um discurso" é o título da obra. Ela foi organizada pelo amigo de Gabo, Cirstóbal Pera. No Brasil, foi vertida para o português por outro amigo do escritor, Eric Nepomuceno. Cristóbal informa no Posfácio que trabalhou na seleção dos textos diretamente com García Márquez. Inclusive, GGM chegou a sugerir a colocação de títulos em alguns discursos. É muito provável que a doença de Gabo tenha se agravado logo após esta data, comprometendo assim a sua prodigiosa memória.

A leitura atenta dos discursos, num arco que compreende mais de seis décadas de vida do autor, revela o amadurecimento literário de Gabo. Como assinala Cristóbal, "neles não se encontram apenas os temas centrais de sua literatura, mas também rastros que ajudam a compreender mais profundamente a sua vida". Serve, assim, como uma espécie de testamento literário do genial autor do mítico "Cem anos de solidão", obra que vendeu mais de 50 milhões de exemplares.

Em tempo: Sobre Cem anos de solidão, o próprio autor admite que a sua publicação daria um livro à parte. Não vamos fazer um livro, mas um Post exclusivo para tratar de algumas curiosidades que o envolvem. Aguarde.

Ficha Técnica
Título: Eu Não Vim Fazer um Discurso
Autor: Gabriel García Márquez
Editora: Record
Gênero: Oratória
Ano: 2011
Páginas: 128

domingo, 27 de abril de 2014

A Extraordinária Ascensão de Obama


Para nós, brasileiros, este é um ano de Copa e Eleição. Os dois assuntos vão prender a atenção do nosso povo. Tanto um quanto o outro desperta paixões. E aí residem grandes dramas humanos. Quando nos detemos sobre a análise desses episódios nos damos conta da complexidade das relações sociais que os envolvem. Elas são fruto de vontade, de luta, de estratégias, de covardias, de trapaças, de espertezas, de heroísmos, com pitadas do imponderável: sorte e azar.

Dentro dessa lógica, já imaginou, por exemplo, ser transportado para uma realidade paralela, como um observador privilegiado dos bastidores da política? Como seria o desenho da arena onde se joga o jogo do poder? Como as peças são movidas para atingir os objetivos? As regras do jogo são respeitadas e obedecidas? Como os personagens principais e os coadjuvantes se comportam? É verdade que os jogadores invadem pântanos onde a ética não brota?

Você terá a nítida impressão de que obteve as respostas a essas perguntas depois da leitura  do livro "Virada no Jogo - Como Obama Chegou à Casa Branca", dos jornalistas John Heilemann e Mark Halperin. A obra reconstituiu as trilhas que conduziram o primeiro afro-americano a liderar, em 2008, a nação mais poderosa do globo. A pesquisa envolveu a realização de centenas de entrevistas exclusivas. Elas só aconteceram  devido ao acesso privilegiado que os autores desfrutam nos meios políticos.

O resultado é uma sucessão de fatos dignos da montagem de um sofisticado quebra-cabeça, Os autores dissecam acontecimentos, episódios e facetas que revelam a cultura que plasmou a cena política de um povo que se desenvolveu sob o manto do jogo democrático. As idiossincrasias dos candidatos são nuançadas com toques de mestre, bem como as estratégias de campanha, tanto do lado Democrata quanto dos Republicanos.


O livro é dividido em três partes. A primeira, que é a mais longa (vai até a Pág. 261) narra a impressionante trajetória de Obama, desde o momento em que foi induzido a entrar na disputa, passando por suas ascensão meteórica que o levou ao triunfo, nas fileiras do Partido Democrata. Ele, literalmente, atropelou a sua poderosa oponente, Hillary Clinton, que aparentava ser imbatível. O pugilato dos dois é digno de um filme de suspense (inclusive, o texto do livro serviu de base para um filme produzido pela HBO).

A verdade é que Obama e Hillary protagonizaram  uma história recheada de dramas, comédias, suspenses, com direito a reviravoltas espetaculares. Ao longo do livro,  o leitor é conduzido  a um cabedal de revelações surpreendentes. A um grau em que se sente como se estivesse nas salas atapetadas de um comitê eleitoral envolto num nível máximo de adrenalina. Não sem razão, a eleição de 2008 foi considerada uma das mais acirradas da história dos EUA.

A investigação dos autores se concentra em alguns dos pontos nevrálgicos que revelam a "virada do jogo" eleitoral que permitiu a vitória de Obama. Nesse sentido, a obra responde, basicamente, as seguintes questões: Por que a família Clinton caiu em desgraça entre os democratas? Como Obama saiu da condição de coadjuvante para ator principal na campanha? Por que John McCain, sem recursos, numa campanha de guerrilha, conseguiu ser indicado pelo Partido Republicano? Por que o republicano optou pela desconhecida Sarah Palin para ser sua companheira de chapa? E, por fim, como Obama aplainou o terreno que o levou à presidência.

A obra também relembra episódios grotescos, chocantes e, até mesmo, picantes. Um dos mais emblemáticos é o caso  do pré-candidato John Edwards. Ele teve  um caso extra-conjugal enquanto a sua esposa se restabelecia de um câncer. Por essas e outras, a publicação The Economist classificou o livro como "abusado, instigante, indiscreto, estarrecedor e compulsivo...". Os autores, após exaustivas pesquisas, conseguiram aprofundar nas revelações feitas por tablóides sensacionalistas. E chegaram a uma conclusão definitiva: era tudo verdade!

Ficha Técnica
Título: Virada no Jogo - Como Obama Chegou à Casa Branca
Autores: John Heilemann e Mark Halperin
Gênero: Reportagem/História
Editora: Intrínseca
Ano: 2011
Páginas: 464

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Ele Recolhia no Lixo Pepitas de Ouro


A vida é um amontoado de cacos do cotidiano. Como produzir boa literatura a partir dessa matéria informe? Deve-se proceder como o garimpeiro que lava o cascalho na esperança de retirar pepitas de ouro. Poucos conseguem. Mas é do trivial que sai o extraordinário. Essas lições foram muito bem apreendidas (e ensinadas) pelo mestre do cotidiano: o jornalista, dramaturgo, romancista, contista e cronista Nelson Rodrigues, o pernambucano mais carioca entre os nossos escritores.

Dizer que Nelson foi um gênio é "óbvio ululante". E este é apenas um entre centenas de bordões de sua autoria que ficaram nacionalmente conhecidos. A sua popularidade se fez seja como cronista de costumes ("A Vida Como Ela É", é uma prova inconteste disso), seja como aclamado cronista esportivo. E se ainda fosse pouco, é considerado (e, diga-se, com muito justiça) como o nosso maior dramaturgo. E mais: muitas de suas peças de teatro foram transpostas para o cinema e obtiveram grande sucesso.

Nelson é daqueles escritores que sabiam recolher do meio das banalidades difusas as pérolas para compor a sua reluzente literatura. É o caso da série de contos "A Vida Como Ela É", publicada no jornal Última Hora, no período de 1951 a 1961, que obteve grande sucesso de público. Os temas abordados giravam em torno do ciúme, fidelidade, vingança, amor e ódio. Tocavam fundo na sociedade conservadora que preferia ver (ou seria ocultar?) essas questões debaixo do tapete.


O autor não deixava pedra sobre pedra. Com sua apurada lente de aumento remexia o lixo da sociedade. Os casos que desnudava eram motivo de escândalo. Os seus personagens (reais) não gostavam de ser retratados na ficção. O espelho era muito cruel. Mas sejamos francos. A sociedade que Nelson captou é atemporal. As chamadas "taras" continuam a habitar o nosso cotidiano, embora pareçam provocar menos escândalos.

Nelson morreu em 1980. Ele nos deixou uma obra consistente. Foram 17 peças, nove romances e centenas de contos e crônicas. A propósito de "A Vida Como Ela É" o autor teceu o seguinte comentário: "Nego a qualquer um o direito de virar as costas à dor alheia. Precisamos ter, continuamente, a consciência, o sentimento dessa dor". Como seres de carne e osso, a tal ponto que poderíamos tropeçar com eles pela rua, os personagens de Nelson são "humanos, demasiadamente humanos".


A obra "O Marido Humilhado", que acabei de ler, é uma compilação de 20 contos da série "A Vida Como Ela É". São apresentados pela Editora Agir como "histórias inéditas" (truque de marketing?). O meu exemplar faz parte da série PocketOuro (de bolso). Trata-se de uma seleção bastante representativa do estilo do autor. Um incansável observador das cenas urbanas cariocas, com aquele olhar de buraco de fechadura, sumariamente "bocagiano". Um perfeito "Anjo Pornográfico".

Ficha Técnica
Título: O Marido Humilhado - História Inéditas da "Vida Como Ela É"
Autor: Nelson Rodrigues
Editora: Agir
Gênero: Contos
Páginas: 176
Ano: 2008

domingo, 20 de abril de 2014

Morangos Frescos e Vermelhos


Tenho um volume antigo do Círculo do Livro (quem ainda se lembra dele?) presumo que de 1984. Havia lido a obra há muitos anos. No final da década de 80 - talvez. A memória guardou pouco desse livro. Reteve o principal: linguagem poética, renovadora, poderosa. Poderia ser definida assim: uma voz de uma geração desesperada, sufocada, ansiosa por liberdade, alegria, beleza.

Com esses fiapos do tempo abri (e reli) "Morangos Mofados", do jornalista e escritor Caio Fernando Abreu, lançado em 1982.  O livro foi considerado, por boa parte da crítica, o melhor lançamento em prosa daquele ano. Faleceu em 1996, vítima de Aids. Mas a sua obra permaneceu. Hoje, continua muito citado, mas, infelizmente, pouco lido. Não deveria ser assim.

Em seu "Morangos Mofados" Caio tece narrativas curtas (contos) para relatar o "grito preso no ar" da juventude dos anos 70 e 80. Os seus personagens situam-se na faixa dos 20 a 30 anos. São garotos e garotas fissurados em sexo, drogas e, claro, música. A famosa trilogia "sex, drugs and rock & roll". Viviam situações-limite.

O ambiente claustrofóbico é comum a todos os contos. Mas, por mais desespero que demonstrem, todos batalham pela vida. O ar rarefeito que aquela geração experimentou não conseguiu sufocá-la. Pouco importa que isso tenha redundado na busca frenética por válvulas de escape. A música, as drogas, representam justamente isso. É como se dissessem: "Eu não quero esta realidade. Dou-me ao direito de criar outra".


O conto "Caixinha de música" possui todos esses elementos poéticos/dramáticos. Começa assim: " Como se estivesse com a cabeça inteira dentro d'água e alguém começasse a tocar realejo na beira do rio. Pequenas bolhas de som explodiam sem choque contra seus ouvidos, nota após nota, até formar-se também por dentro aquela melodia tão remota e lenta que parecia vir não mais da margem, mas do fundo".


Vem lá do "eu profundo" a angústia de Caio Fernando Abreu. Ele corta a própria carne para produzir a sua literatura. Fala da sua condição homossexual sem incorrer em simplismos. Denuncia, livre do engajamento militante (pois resvalaria no esquematismo) a exclusão das minorias - em especial, dos gays. Ao contrapor o amor e a violência desnuda uma sociedade arcaica, moralista e opressiva.

O conto que dá título ao livro "Morangos Mofados" é composto como uma peça musical. Tudo a ver pois é uma referência direta à famosa canção de Lennon e McCartney (Strawberry field forever). À noite, o personagem vomita pedaços de morangos verdes mofados. Mas, amanhece um novo dia. Ele sobe ao terraço. Coloca-se diante de um dilema: pular e cometer suicídio ou plantar morangos frescos e vermelhos no canteiro. Sim: opta pela segunda alternativa. A vida vence, Caio continua vivo com sua obra perene.

Ficha Técnica
Título: Morangos Mofados
Autor: Caio Fernando Abreu
Gênero: Contos
Editora: Círculo do Livro
Ano: a Editora não informa
Páginas: 174

domingo, 30 de março de 2014

Navegando pelo Mississipi



Ora engraçado, ora realista, ora fantástico, ora dramático. Assim são as aventuras do jovem Huckleberry Finn, do eminente escritor Mark Twain, pseudônimo de Samuel Langhorn Clemens. Twain nasceu no Missouri, em 1835. Foi criado à beira do rio Mississipi. Tornou-se timoneiro de barco a vapor, tipógrafo, soldado e jornalista, antes de tornar-se escritor de sucesso..

As suas experiências navegando pelo Mississipi serviram de inspiração  para seus romances mais conhecidos - Tom Sawyer e As Aventuras de Huckleberry Finn. Este último é considerada a sua obra-prima. O autor trabalhou sete anos na composição do romance. Ernest Hemingway chegou a afirmar que o livro foi a base de "toda a literatura americana moderna". E sentenciou: "Não havia nada antes. Não houve nada tão bom desde então".

Escrito em 1885, a temática do livro tem uma aparência infanto-juvenil. Mas ele é muito mais do que isso. Trata-se de um retrato vivo do interior dos EUA na segunda metade do século XIX. Os personagens refletem o mundo rural com as suas gírias, superstições e o rico folclore ribeirinho. As aventuras traçam também um painel da sociedade da época. Nessa linha, reflete o anseio de liberdade, presente tanto em Huck, quanto no escravo fugido Jim.

As aventuras descritas por Huck são cheias de contrastes. Em alguns momentos tem-se a impressão que as histórias são ingênuas, uma vez que são narradas pela ótica do garoto. Mero engano. Antes, são revelações da perda da inocência, ainda que as narrativas sigam uma linha da moral convencional. Por fim, expõem a opressão social, a hipocrisia, a falsidade e a crueldade das relações sociais.

Ficha Técnica
Título: As Aventuras de Huckleberry Finn
Autor: Mark Twain
Gênero: Romance
Editora: L&PM Pocket
Páginas: 320
Ano: 2011

quarta-feira, 26 de março de 2014

Ele é Tarja-Preta


Para quem gosta de humor, é um prato cheio. Para quem gosta de um texto redondo, bem elaborado, é um prato cheio. Para quem gosta de frases curtas, objetivas, é um prato cheio.  Para quem gosta de criatividade, também, é um prato cheio.

Talvez, em função desses ingredientes, fartei-me na leitura de "Minhas Mulheres e Meus Homens", do impagável Mário Prata. Tá bom, tá bom, eu vou entregar. Ele é aquele cara autor da novela "Estúpido Cupido". Se tiver mais de 45 anos, você sabe do que (ou de quem) eu tô falando. Mas, verdade seja dita (e bendita), o Prata é muito mais que um autorzinho de novelinha pra TV. Isso temos que convir.

O cara é um puta teatrólogo, um puta cronista, um puta jornalista, um puta escritor (e ainda é pai do Antônio e da Maria). É muita putaria para um Prata só? E o cara ainda é o que? Desculpe-me, mas nessa armadilha eu não vou cair. Nunquinha que vou dizer que ele é um excelente escritor porque "é Prata da casa". Nascido em Uberaba e criado em Lins.

Ah! Isso eu não digo. Nem morto. Mas falando sério (como se isso fosse possível em se tratando de Mário Prata) você abre o livro do cara e simplesmente não consegue parar de ler. Eu não sei porque cargas d'água li o livro de trás pra frente. Só pode ser coisa de gente doida.

Mas acho que foi só pra contrariar - o autor. É que ele diz, lá no início da obra, que não ia fazer um "Prefácio", mas um "Pós-fácio". E por que? Porque o livro estava sendo relançado e a jornalista Marta Góes (por acaso, mulher dele - a época - e futura-ex), já havia feito o Prefácio em 1988 (época da 1a. edição), que era em ordem alfabética.

Então, nesta nova edição de 2011 (hoje, já não tão nova assim), o Mário Prata resolveu mudar e colocar os textos na ordem cronológica. Eu, leitor do cara, fiquei emputecido. Em assim sendo, o que fiz? Resolvi radicalizar a minha leitura: li o livro de trás pra frente. Aí cheguei a uma conclusão definitiva: o cara (Prata) é doido. E varrido.

Felizmente (ou infelizmente, não sei bem), nós todos (seus leitores) jogamos no mesmo time do Prata. Ou seja, quem admira doido é o que? Será que é preciso responder? Antes de dizer mais alguma coisa, me dá um tempinho aí. Vou ali no meu quarto tomar o meu Tarja-Preta. Fui!

Ficha Técnica
Título: Minhas Mulheres e Meus Homens
Autor: Mário Prata
Gênero: Crônicas
Editora: Planeta
Páginas: 270
Ano: 2011

domingo, 9 de março de 2014

Escrever: Uma Viagem Sem Volta



Como se dá a jornada do autor em busca da sua obra? Quais os caminhos que deve percorrer? Como é o processo de formação? O que faz para amadurecer o processo criativo? Quais os referenciais teóricos? O que o move na direção desse ofício? Enfim, o que leva alguém a ser escritor?

Grande parte das respostas a estas indagações você, leitor curioso, poderá encontrar no livro " O Espírito da Prosa - Uma Autobiografia Literária", do escritor e romancista Cristovão Tezza. O autor é considerado um dos maiores prosadores brasileiros da atualidade. Ganhou diversos prêmios literários importantes e sua obra foi traduzida para diversos países.

Tudo isso nos dá a certeza de que estamos diante de um escritor maduro e calejado. É com esse backgraund que se propõe a fazer revelações e reflexões sobre o seu ofício. E logo na primeira linha faz uma advertência ao leitor: "Este não é um trabalho acadêmico". Isto porque durante mais de 20 anos Tezza foi professor universitário. Para lembrar a velha máxima do ex-ministro Eduardo Portela: esteve professor universitário. Ele nunca abdicou da sua essência: escritor.
Cristovão Tezza
Entre as suas confissões, Tezza faz uma auto-crítica sobre a sua iniciação literária que, segundo afirma, estava contaminada por uma visão de mundo simplista, imatura, típica da geração dos anos 60 e 70 do século passado. Em tom irônico, observa: "por uma inexplicável conspiração da realidade contra mim, acabava por escrever textos ideologicamente primários, literariamente imaturos e tecnicamente sofríveis".

E por que isso acontecia? Faltava, no seu entendimento, uma visão de mundo mais consistente e mais consciente. A compreensão de que a "literatura é um fato da cultura humana, um objeto contingente, ao sabor da história e dos valores de seu tempo". Fora disso, a escrita, o texto literário, não se sustenta em pé. É ôco e vazio.

No processo de amadurecimento, em diversos momentos, o escritor "se vê às vezes com um amontoado de palavras que parecem se descolar, aqui e ali, de suas referências, como animais indóceis, e é preciso domesticá-los". Tezza assim como empenhou-se para domar o verbo, desprendeu igual esforço para não se afastar da realidade. Foi por isso que resistiu aos modismos acadêmicos que propugnavam o "fim do romance burguês" e a queda da bastilha do realismo.

O autor, nesse particular, é peremptório na defesa do realismo. Para ele este é um conceito-chave da sua vida literária. Tezza, inclusive, chega a reconhecer a existência de um "medo subterrâneo do realismo" por parte de pensadores "pós-modernos" surgidos no grande movimento contra-cultural dos míticos anos 1960, época do "é proibido proibir".

A influência desses grupos, na opinião de Tezza, só agora começa a se esgotar. Mas eles deixaram um grande legado negativo para a prosa que "desaprendeu-se, e só 30 anos depois começaria enfim a reaprender-se, sob as coordenadas de um novo tempo". Para o autor "um escritor ausente de sua frase é a derrota do texto".

Talvez por isso, no autor maduro cristalizou-se a certeza de que "o texto não está pairando numa nuvem do cérebro que só você conhece, mas desenhado concretamente sobre o papel, e é só a esse desenho, cada ponto e cada vírgula, que o leitor tem acesso". Uma outra certeza também revelou-se cristalina: "a ficção, por si só, apara as arestas do caos, põe nele uma moldura e desenha os limites do mundo".

Traçado esse arcabouço, Tezza enche-se de convicção para sublinhar a real motivação do escritor: "escrevemos porque queremos chegar aos outros". E, assim, reconhece que a escrita possui um poder transformador, pois "não se escreve impunemente". Ao reconhecer que o escritor é, antes de tudo, um inadequado, Tezza expõe-se: "pessoas felizes não escrevem". E ele tem uma explicação: "Há um milhão de coisas mais interessantes à disposição dos felizes".

Á guisa de conclusão, o autor nos deixa com uma batata quente nas mãos quando questiona: " por que diabos iriam eles largar os prazeres tranquilos da felicidade pela incerta e terrível solidão da escrita que, quando de fato assumida, é uma viagem sem volta?".

Ficha Técnica:
Título: "O Espírito da Prosa - Uma Autobiografia Literária"
Autor: Cristovão Tezza
Gênero: Autobiografia
Editora: Record
Páginas: 222
Ano: 2010


sábado, 22 de fevereiro de 2014

Sônia nos Brinda com Diário do Clima


Em pleno verão, num dia que lembra o inverno (a chuva cai intermitente), com frio para os padrões dessa estação, leio compenetrado o livro de Sônia Bridi "Diário do Clima". Garanto: não é papo de eco-chato. O que ela relata não poderia ser mais atual e oportuno. É um alerta bem fundamentado sobre os sinais que a Terra nos manda sobre as mudanças climáticas. E que só não vê quem não quer.

A "invernada" de verão é só um exemplo que tenho às mãos. Ao ler a obra você entende melhor porque o aquecimento global está produzindo coisas como essa (chuvas muito mais intensas que de costume), sem falar no derretimento das geleiras nos Andes, calor bem acima do normal ou nevascas fora dos padrões. O que originou o livro foi a série de reportagens de TV "Terra, que tempo é esse?", que Sônia produziu em conjunto com seu marido, o cinegrafista Paulo Zero. A série foi exibida pelo "Fantástico", da Globo.

Para contextualizar melhor o problema do aquecimento global, mostrar os bastidores das reportagens, o embasamente científico que norteou  a série de TV, Sônia resolveu escrever o livro. Se o telespectador se deliciou com o apuro das imagens de Paulo Zero, com o livro o leitor ganha a oportunidade de se aprofundar mais nessa temática (e também aqui ganha ótimas imagens de fotografia, que estão como encarte).

Para navegar na onda do livro, eu diria que o texto da Sônia flui como um rio. É leve, ágil, refrescante (ainda que o tema seja aquecimento), como um banho de cachoeira. Você sempre quer mais. Objetivo, direto, sem penduricalhos. Figura na melhor tradição dos relatos de viagens. Mas se parece, também, com aquela conversa de amigos num roda de fogueira na beira de um rio com lua cheia (faz lembrar uma noite nas areias do Rio Araguaia).


Para compor a série de TV Sônia e Paulo Zero viajaram por 14 países, num período de seis meses, entre maio e outubro de 2010. Ouviram especialistas e cientistas nos principais centros de ponta do planeta. Mas também embrenharam-se por lugares remotos - nos Andes, na Áfria, na Groelândia, na Amazônia. Sempre em busca do mesmo objetivo: mostrar os extremos do clima e os riscos desse fenômeno para a humanidade.

O faro da repórter nos conduz pelos bastidores das reportagens. Revela o trabalho árdua para alcançar o resultado esperado - a melhor imagem, o melhor ângulo, a melhor luz, o melhor enquadramento, o melhor enfoque. É quando Sônia deixa entrever (sutilmente) a grande paixão pelo que faz. E é justamente isso que suplanta os perigos, os medos, os cansaços e a faz superar todas as dificuldades que se interpõem entre ela e a informação.

A razão conduz o trabalho. Previne perigos. Mas a emoção não pode ser ofuscada quando Sônia se depara com o maior deserto de sal do planeta (Bolívia), com o vôo dos flamingos, com a paisagem de tirar o fôlego na viagem de trem que empreende pelas montanhas do Peru rumo à outrora cidade perdida de Machu Pichu. Isso para ficar só com alguns dos lugares inóspitos que percorreu na sua longa jornada pela Terra.

A jornalista Mirian Leitão, que assina a orelha do livro, diz que o relato de viagem de Sônia "une as pontas do mundo". Ora ela está nos Andes, depois em Paris, em Londres, em Veneza, no Colorado, na África e na Groelândia. Mirian acrescenta: "o mundo parece ser todo vizinho". E para a nossa autora é mesmo. Seja por suas belezas naturais, mas também por suas tragédias climáticas.

O que Sônia quer deixar bem claro: vivemos num mundo totalmente interligado. O derretimento das geleiras nos Andes provoca graves consequências para o clima aqui no Brasil (e explica as intensas e extemporâneas chuvas de verão). O que acontece na África reverbera sobre a maravilhosa cidade de Veneza, e assim sucessivamente. A Terra é um sistema intrincado, complexo, interconectado. Cientistas e especialistas ouvidos pela repórter explicam isso em detalhes.

As conclusões que Sônia tira do seu relato não são para assustar, para provocar pânico e alucionações. Antes, são um convite para nos deixar mais conscientes sobre a necessidade urgente de exigirmos mudanças na forma como as nações encaram o desenvolvimento, a produção, o consumo. Repensar o modelo de desenvolvimento. Ainda dá tempo de mudar o futuro. Basta encarar de frente os problemas presentes. E pensar em soluções e alternativas que sejam viáveis para que as gerações futuras não sejam penalizadas e herdem um planeta em decomposição.

Ficha Técnica
Título: Diário do Clima
Autora: Sônia Bridi
Gênero: Reportagem
Editora: Globo
Páginas: 256
Ano: 2012

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Ficção e Verdade em Álvaro de Campos



Iconoclasta, rebelde, demolidor, hipocondríaco, dialético, cético, sorumbático. Muitas são as definições possíveis para Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, um dos maiores nomes da língua portuguesa de todos os tempos. Mas, talvez, uma única definição possa resumi-lo: gênio.

Sei. Nenhuma novidade nessa sentença.  Se quisesse parodiá-lo, poderia questionar: mas quem disse que busco originalidade, sempre? Às vezes, é necessário desfraldar o óbvio, agitá-lo como uma bandeira. Mas convenhamos que, só um gênio indisciplinado, withmaniano, marinettiano, poderia ter escrito obras-primas como "Tabacaria", "Apostila", "Aniversário", "Ode Marítima", "Ode Triunfal" e "Passagem das Horas".

São poemas arrebatadores. Só alguém levado pela livre manifestação dos sentidos poderia ter parido tais criações. E o que é mais curioso: trata-se da criação de uma criação. Explico: primeiro Fernando Pessoa criou (pariu) um outro eu. No caso, o seu heterônimo Álvaro de Campos, engenheiro naval, para dar vazão a uma personalidade -para dizer o mínimo- audaciosa, escandalosa e polêmica.

Há um século, Fernando Pessoa, deixou a sua alma transbordar ao registrar em versos alguns "estados d'alma" de um espírito irrequieto, perturbado, angustiado. Ele buscava nas palavras e com elas a expressão do inexprimível. Os limites do verbo pareciam estar aquém do seu eu  profundo:

"Ruge, estoira, espuma, vence, quebra, estrondeia, sacode,
Freme, treme, espuma, venta, viola, explode,
Perde-te, transcende-te, circunda-te, vive-te, rompe e foge,
Sê com todo o meu corpo todo o universo e a vida,
Arde com todo o meu ser todos os lumes e luzes,
Risca com toda a minha alma todos os relâmpagos e fogos,
Sobrevive-me em minha vida em todas as direções!"

Na sociedade portuguesa, provinciana, de um século atrás, é de se presumir o que provocou a poesia de Fernando/Álvaro: um escândalo. Tanto quanto alguns anos depois iria se verificar no Brasil a indignação dos conservadores acadêmicos com a Semana de Arte Moderna, em 1922, em especial, quando o poeta Manuel Bandeira agitou o revolucionário poema "Os Sapos".

Mas voltemos ao ponto. Para Pessoa, o que era mesmo a poesia? O que buscava? Qual o seu propósito? Ele fez a seguinte teorização: "Um poema é a projeção de uma ideia em palavras através da emoção. A emoção não é a base da poesia: é tão-somente o meio de que a ideia se serve para se reduzir a palavras". Dizendo assim, até parece simples. Aviso aos navegantes: nem simples, nem simplista. O que soa simples é uma sofisticada elaboração na escrita de um dos maiores estetas da língua portuguesa.

Ele, Pessoa, sem se deixar envolver pelo sentimentalismo, exalta a chegada da noite em versos memoráveis, como estes em "Dois Excertos de Odes":

"Beija-nos silenciosamente na fronte,
Tão levente na fronte que não saibamos que nos beijam
Senão por uma diferença na alma
E um vago soluço partindo melodiosamente
Do antiquíssimo de nós
Onde tem raiz todas essas árvores de maravilha
Cujos frutos são os sonhos que afagamos e amamos
Porque os sabemos fora de relação
com o que há na vida".

A nau poética de Fernando Pessoa, definitivamente, não tinha porto. Por querer alcançar todas as sensações, navegava em todas as direções, rumo ao desconhecido, ao intocado, ao inexplorado. A sua cartografia não mirava um porto geográfico: o alvo era o espírito humano. Mais que o físico - o metafísico. No poema "Passagem das Horas" ele explica isso com precisão:

"Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que via através de janelas ou vigias
Ou de tombadilhas, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco
para o que eu quero".

E o que quer Fernando Pessoa? Ele deseja, pela palavra, pela poesia, expressar tudo e nada e o intervalo entre essas duas coisas. E para isso, obviamente, tem que recorrer a sofismas poéticos ou, ainda, a ironia dialética. O que é certo é que Álvaro de Campos expressou a faceta mais rebelde, audaciosa, provocadora do bardo português. Todo esse arrojo poético pode ser degustado, como um bom vinho de guarda, no livro "Ficções de Interlúdio/4 - Poesias de Alvaro de Campos".

A minha edição data de 1976, da Editora Nova Aguilar. É uma obra para ser lida sem pressa. Cada poesia, sorvida como um pequeno cálice de vinho (de preferência, do Porto). Beba sem moderação. Embriague-se de poesia. E depois, se quiser, dirija. Mas devagar, com calma. É perfeitamente possível refletir sobre o absurdo da existência humana. Imitando o bom rebelde - português.

Ficha Técnica
Título: Ficções de Interlúdio/4 - Poesias de Alvaro de Campos
Autor: Fernando Pessoa
Gênero: Poesia
Editora: Nova Aguilar
Páginas: 224
Ano: 1976

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Ariano: As Falsas Pedras do Reino


Acabo de ler Ariano Suassuna - Um Perfil Biográfico, de Adriana Victor e Juliana Lins, publicado pela Zahar (2007). O livro, como deixa antever o título, traça um panorama da vida do escritor, conduzindo o leitor até o universo mítico de Suassuna. Propõe-se a desvelar o homem, o escritor e a sua obra.

Ao embarcar na leitura somos guiados pelos caminhos trilhados pelo autor desde a sua infância. Dando vazão a esse propósito, as autoras destacam que, desde muito cedo, "Ariano herdou o gosto pelas cantorias de viola, as peças de mamulengo, as farsas do teatro - e os livros, muitos livros".

Autor de obras-primas como Auto da Compadecida, Romance d'A Pedra do Reino, e tantas outras, o escritor nordestino, conforme as autoras, "é um sonhador, dedicado, apaixonado pela família, pela vida e pela arte". Podemos questionar: por que a obra do autor fala tanto de pedra, de circo e de santos? A resposta está na sua história pessoal e da sua terra, com seus mitos e sagas, grandezas e misérias. Enfim, na essência de homem apaixonado por suas raízes sertanejas.

Adriana e Juliana desfiam um texto saboroso. Contam casos corriqueiros, curiosos e pitorescos. É como se estivéssemos na casa de Ariano, tomando um café na sala de visitas, ouvindo as suas histórias, embalados pelo sotaque nordestino. Este talvez seja o maior mérito do livro: deixar o leitor à vontade, vidrado, esperando a próxima história a ser narrada.

A trajetória de vida de Ariano é muito rica. O assassinato do pai, quando o autor tinha três anos, foi uma tragédia que o acompanhou por toda a vida. Mas isso não o impediu de expressar um profundo senso de humor, que está largamente caracterizado em suas criações.

Na realidade, ele soube conviver com a dor. Tanto assim que deixou escapar, em 1990, quando foi empossado na Academia Brasileira de Letras, uma espécie de desabafo: "Posso dizer que, como escritor, eu sou, de certa forma, aquele mesmo menino que, perdendo o pai assassinado no dia 9 de outubro de 1930, passou o resto da vida tentando protestar contra a sua morte através do que faço e do que escrevo, oferecendo essa precária compensação e, ao mesmo tempo, buscando recuperar sua imagem, através da lembrança, dos depoimentos dos outros, das palavras que o Pai deixou".

Esse mesmo Suassuna que teve as suas obras incansavelmente lidas, estudadas, traduzidas e adaptadas para cinema e TV, disse uma vez: "Há duas raças de gente com as quais simpatizo: mentiroso e doido, porque eles são primos legítimos dos escritores".

Para que o leitor não fique chocado com a revelação, ele esclarece o raciocínio: "O que é um mentiroso? É um camarada que não se conforma com o universo comum e inventa outro. Ora, isso é um escritor. Eu também sou assim. Na minha vida não acontece nada, se eu não mentir o que é que vou contar?"

Adriana e Juliana, imediatamente, fazem uma intervenção e assinalam: "Mas aí já há uma mentira. Como foi visto, a vida de Ariano Suassuna serve a um livro, a muitos livros". E é a mais pura verdade. Depois de investigar e repassar a vida do escritor as autoras encerram a obra tentando resumir em poucas palavras o perfil do escritor.

E é assim que o fazem: "Criador de cabras e de literatura. Meio rei, meio palhaço, dividido entre os dois hemisférios da alma humana, exibindo o lado trágico do primeiro, escancarando o que persiste de cômico no segundo. Um complementando o outro, os dois equlibrando-se entre si. O hemisfério rei se complementando com o hemisfério profeta; o hemisfério poeta, com o palhaço.

Eis, em pinceladas sutis, um retrato sensível, de um espírito igualmente sensível, ou ainda, de um "cronista-fidalgo, rapsodo-acadêmico e poeta-escrivão", que não comporta uma única definição, posto que seria reducionista, já que se trata de um criador multifacetado. E é sempre bom lembrar que ele ele é dado a mentir, a fingir, e como nos ensinou Fernando Pessoa: "O poeta é um fingidor/ finge tão completamente/ que acaba fingindo que é dor/ a dor que deveras sente".

Ficha Técnica
Título: Ariano Suassuna - Um Perfil Biográfico
Autoras: Adriana Victor e Juliana Lins
Gênero: Biografia
Editora: Zahar
Páginas: 136
Ano: 2007


domingo, 2 de fevereiro de 2014

Bravo! faz um Gol de Letra


Este ano, sem dúvida, o Brasil vai respirar futebol. Aliás, já estamos respirando. Depois de quase seis décadas e meia, o país volta a ser o centro mundial desse esporte. Trata-se, afinal, da paixão maior do nosso povo. Mas existem vozes contrárias à realização da Copa do Mundo no país. Eu, cá do meu canto, sinto uma imensa vontade de plagiar Nelson Rodrigues: “Só os idiotas da objetividade não vêem a importância desse fato”. Poderia até completar com outra máxima do escritor: “Em futebol, o pior cego é aquele que só vê a bola”.

O nosso cronista maior desse esporte (e, também, o nosso maior dramaturgo), via no futebol algo que transcendia as quatro linhas do campo. Nelson usou o futebol para dissecar a alma do brasileiro. Não é à toa que suas crônicas futebolísticas lançam luzes sobre a formação cultural do país. Outro que usou o futebol como metáfora foi o grande romancista José Lins do Rego, autor da seguinte alfinetada: “... há uma grandeza no futebol que escapa aos requintados”.  Isso na época em que a elite intelectual via o esporte com certa reserva.

José Lins explicou melhor o seu raciocínio: “Não é ele só o espetáculo que nos absorve, que nos embriaga, que nos arrasa, muitas vezes, os nervos. Há na batalha dos vinte e dois homens em campo uma verdadeira exibição da diversidade da natureza humana submetida a um comando, ao desejo de vitória”. Vejam bem: “diversidade da natureza humana”. Alegria, vibração, frustração, êxtase, ódio, amor, heroísmo, covardia, expectativa, decepção, todos esses sentimentos essencialmente humanos estão amalgamados numa única partida de futebol.

Essas considerações (porque não dizer, este preâmbulo, ou para usar uma terminologia do jornalismo, este nariz de cera) me vêm a propósito do livro que acabei de ler, que se chama: “Literatura e Futebol”. Trata-se de uma publicação especial da Revista Bravo, que foi lançada em 2010. O organizador da coletânea foi  João Gabriel de Lima. A edição ficou a cargo do tricolor das laranjeiras Marcelo Moutinho. Destaque especial para o craque das ilustrações Ricardo Soares. Quem assina a edição de imagens, com fotos espetaculares, é Guilherme Tosetto.

O livro reúne um timaço de 18 escritores. Todos tratam, é claro, de um mesmo tema – futebol- utilizando diversos gêneros – crônica, conto e poesia. O leitor se depara com pesos-pesados da literatura como Carlos Drummond de Andrade, Ferreira Gullar, João Cabral de Melo Neto, Rubem Fonseca, Lima Barreto, Luís Fernando Veríssimo, Clarice Lispector (única representante feminina), Antônio de Alcântara Machado, além dos já citados (não poderiam ficar de fora de jeito nenhum) Nelson Rodrigues e José Lins do Rego.


O resultado dessa miscelânea é um painel literário bastante representativo. Ele demonstra como o tema serviu de matéria-prima para grandes nomes das nossas letras. Mesmo assim, há quem veja escassez de autores brasileiros que utilizaram esse assunto como mote para suas criações. Pode até ser. Mas, podemos dizer sem medo de errar: se a quantidade é limitada, a qualidade não é.

Vale a pena o leitor conferir, deleitando-se com os textos saborosos do livro. Puxando a sardinha aqui para os lados do cerrado, eu destacaria como bem representativo dessa obra o conto do escritor goiano, radicado no Rio de Janeiro, Flávio Carneiro. A história de sua autoria é “Penalidade Máxima”. Ela descreve a tensão que envolve um dos momentos mais dramáticos do futebol, que, justamente, serve de título ao texto. O que se passa na cabeça do jogador naquela fração de segundo em que ele vai bater o pênalti. Essa angústia foi meticulosamente retratada no texto do autor goiano.

Como disse anteriormente, a Antologia escalou 18 escritores, tal como se faz numa partida de futebol, só que nesse caso sete ficam no banco de reservas. Nessa seleção literária todos são titulares. E com isso, os organizadores de “Futebol e Literatura” fizeram um belo gol: de letra.

Ficha Técnica                     
Título: Futebol e Literatura
Autor: João Gabriel de Lima (Org.)
Gênero: Coletânea de Literatura Brasileira
Editora: Abril
Páginas: 148
Ano: 2010



quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

A História de Encontros Memoráveis



Mantenho o saudável hábito de visitar sebos. No último sábado, fui ao centro da cidade. Parei num próximo da  Av. Goiás com a Paranaíba. Garimpando muito, deparei-me com uma pequena jóia de capa dura, muito bem encadernada. Trata-se da obra "Primeiros Encontros - Um Livro de Encontros Memoráveis".  Os autores são Nancy Caldwell Sorel e Edward Sorel. Acertou se você intuiu que se trata de marido e mulher. Ambos nascidos nos EUA.

Ela, escritora; ele, artista gráfico, responsável pelas soberbas ilustrações dos personalidades descritas. Os textos são enxutos, concisos, objetivos. Nenhum ultrapassa uma página. São pequenos recortes na vida de pessoas influentes em seus respectivos campos de atuação - cineastas, escritores, atores de cinemas, músicos, pintores, políticos, magnatas, filósofos e, até, mafiosos.

Pense numa personalidade influente dos séculos XVIII, XIX e XX. Provavelmente estará retratado, seja na prosa macia de Nancy, seja nos traços seguros de Edward. Freud, Voltaire, Lenin, Chaplin, Al Capone, Orson Wells, Hitler, Billie Holiday, Marilyn Monroe, Winston Churchill, Bertrand Russel, Victor Hugo, enfim, todos que interessam estão contemplados na obra.

A leitura é prazerosa. Do início ao fim. Uma festa para os sentidos, porque promove um perfeito casamento entre os textos (na verdade breves perfis) e as ilustrações. O leitor é fisgado pela descrição do "xaveco" que o magnata Howard Hughes lançou sobre a exuberante atriz Ingrid Bergman. O gavião não raptou a presa. Ingrid resistiu olimpicamente.

Não se pode dizer o mesmo do encontro dos escritores Edmund Wilson e Mary McCarthy. Ele, baixo e gordo, com 42 anos e ela na flor da idade, com 25. Era outubro de 1937. Depois de um convite para jantar feito por ele, a paixão se instalou. Casaram. O enlace não durou muito tempo, mas rendeu boas histórias, a exemplo de outro casal do balacobaco - F. Scott Fitzgerald e Zelda.

Voltando ao volume que comprei. A José Olympio, tradicional casa de livros fundada em 1931, fez um belo trabalho ao editar a obra.  O exemplar que adquiri é uma 2a. edição de 1996, ou seja, de dezoito anos atrás. Não sei se novas edições foram lançadas. Mas bem que merecia. Acredito que está fora de catálogo da editora. Mas quem sabe você tenha tanta sorte quanto eu e consiga garimpar um exemplar perdido em algum sebo? Afinal, a esperança...

Ficha Técnica
Título: Primeiros Encontros - Um Livro de Encontros Memoráveis
Autores: Nancy Caldwell Sorel e Edward Sorel
Gênero: Humor e Celebridades
Editora: José Olympio
Páginas: 130
Ano: 1996

Orelha de Papel

Resolvi imprimir um foco mais específico para o Blog. Daí porque estou adotando uma nova identidade. E ela começa pelo nome: Orelha de Papel. O que isso significa? Vou focar no mercado editorial. O meu objetivo, como já estou fazendo há alguma tempo, é resenhar os livros que leio.

Mas não vou me limitar às resenhas. Quando achar conveniente, vou falar sobre o universo dos livros de maneira mais ampla. Por exemplo: o trabalho de edição e lançamento de livros, distribuição e, também, sobre o mercado de livros digitais (e-books).

Também não deixarei de publicar minhas crônicas, poesias e contos. Acredito que esses textos vão contribuir para arejar o blog. E, ainda, servem de estímulo para o exercício literário. Afinal, já não faz mais sentido, nos dias que correm, a existência de escritor de gaveta, escritor inédito.

Portanto, sejam muito bem-vindos ao Blog Orelha de Papel. Espero podermos compartilhar o gosto e o prazer da literatura e dos livros. Boas leituras!

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Stevenson: Nem Médico, Nem Monstro




Li de forma despretenciosa "Stevenson Sob as Palmeiras", do escritor argentino Alberto Manguel. A obra narra as vivências do escritor (romancista, ensaísta e poeta) escocês, Robert Louis Stevenson, em Samoa, ilha onde fixou residência, depois de dar a volta ao mundo. Nesses confins idílicos do Pacífico Sul, isolou-se para escrever em silêncio e dar asas à sua fantástica imaginação.

Fã confesso de Stevenson, Manguel decidiu tomá-lo como personagem. O autor nos conduz calmamente ao paraíso tropical do consagrado escritor. Descreve a residência confortável do autor, o escritório arejado, o sol e o calor, a sombra dos flamboyants e a nudez das mulheres da ilha de Samoa, classificada como "pele escura, brilhante e dura como pedra vulcânica".

Tudo parece ir bem para Stevenson, que é idolatrado pelos nativos da ilha. Eles se referem ao romancista como Tusitala ou "contador de histórias". Em determinada altura, um crime abala o suposto nirvana tropical. A tensão e o mistério se instalam, bem como se agrava a doença do escritor (ele era tuberculoso). Vida e ficção se misturam. É quando afloram, também, as agudas diferenças culturais dos europeus e dos nativos.

Todo esse enredo -ambientação, história e personagens- só poderia render boa literatura. É o que faz com muita competência Alberto Manguel. O autor dignifica o gênio do seu colega escocês que nos legou clássicos do porte de "O Médico e o Monstro" e "A Ilha do Tesouro".

"Stevenson Sob as Palmeiras" é uma competente homenagem ao mestre do terror e das aventuras. E, por isso, é um convite e um incentivo para penetrar no mundo do grande estilista e contador de histórias que foi Stevenson. Para se ter ideia do seu prestígio, foi, também, admirado por mentes brilhantes como Jorge Luis Borges, Graham Greene e Italo Calvino.

Sobre o seu personagem, Manguel adverte: "Ler Stevenson é uma aventura intelectual, um encontro com uma mente clara e despretenciosamente inteligente; mas, acima de tudo, é um ato de amizade, pois quem abre um de seus livros (a menos que tenha o espírito insensível e a cabeça embotada) ganha um amigo generoso e honesto para o resto da vida".

Ficha Técnica
Título: Stevenson Sob as Palmeiras
Autor: Alberto Manguel
Gênero: Ficção Policial e de Mistério
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 88
Ano: 2000

domingo, 26 de janeiro de 2014

Uma Janela para o Universo Pessoal



O autor do consagrado best-seller "Uma Breve História do Tempo", Stephen Hawking, faz algo que parecia improvável: lançou há pouco "Minha Breve História". Nesta nova obra, em tom autobiográfico, narra a sua trajetória pessoal, desde a infância, na Londres do pós-guerra, até obter a consagração e o reconhecimento da comunidade científica internacional.

O cientista mais famoso da atualidade, que conquistou leitores no mundo todo ao explicar os mistérios do universo, volta-se  para o seu universo pessoal. Com muita desenvoltura, fala da descoberta da sua doença (esclerose lateral amiotrófica), aos 21 anos, até as desavenças conjugais - separou da sua primeira mulher, com quem teve três filhos. E, também, relata a experiência do seu segundo casamento, que também foi desfeito.

Mas não pense o leitor que o livro tem alguma coisa parecida com as revistas "Contigo" e "Caras". E não se trata, muito menos, de um livro de auto-ajuda. Embora, deva-se reconhecer, que em alguns momentos o relato possa servir de inspiração motivacional para quem está ingressando no restrito mundo da física e da cosmologia.

Concordo plenamente com o que diz a orelha do livro. Ao nos aventurarmos pelo universo de Howking nos deparamos com um autor: "perspicaz, íntimo e inteligente". A obra, acrescenta o texto da orelha, "abre uma janela para o universo pessoal de Howking". Nesse aspecto, temos que admitir: somos todos bisbilhoteiros. Afinal, trata-se da vida extraordinária  de um dos mais brilhantes cosmologistas de nosso tempo. E isso não tem nada a ver com Big Brother, que, convenhamos, é um amontoado de nulidades.

O leitor não deve esperar por relatos melodramáticos, tão ao gosto das novelas mexicanas. O autor, ao se despir (no bom sentido) para o público, tem o cuidado de usar da simplicidade e do humor para descrever a sua evolução pessoal e intelectual. Somos convidados para uma conversa na sua sala de visitas. Ele nos conta que já apostou com um colega sobre a existência de um buraco negro.

Interessante que Howking dá a entender que, realmente, gosta de apostas e, também, é curioso com as apostas alheias. Com muita sagacidade, revela o seguinte caso: " Quando eu tinha doze anos, um dos meus amigos apostou um saco de doces com outro que eu nunca seria ninguém. Não sei se tal aposta foi paga algum dia, e se foi, quem a ganhou".

Em outro momento, de novo o autor nos surpreende: "Sempre fui um aluno mediano", para acrescentar em seguida que a sua turma era de pessoas brilhantes. Outra revelação: "Meus trabalhos escolares não tinham capricho e minha caligrafia era o desespero dos professores". Ou seja, por trás do gênio, habita um simples mortal.

Nós, simples mortais, que sempre buscamos inspiração nos mitos e nos gênios, podemos nos espelhar nessa frase simples e sincera: "Quando você se depara com a possibilidade de uma morte precoce, percebe que a vida vale a pena e que há muitas coisas que você deseja fazer". Isso, por si só, vale a leitura do livro despretencioso do Einstein moderno. E você, ainda vai reclamar de dificuldades e de falta de tempo?

Ficha Técnica
Título: Minha Breve História
Autor: Stephen Hawking
Gênero: Autobiografia
Editora: Intrínsica
Páginas: 144
Ano: 2013


A Literatura a Serviço da Verdade



A literatura deve ter compromisso com a realidade? Deve influir nos rumos dos acontecimentos históricos? Acredito que foi a resposta a estas dúvidas que estimularam os escritores Carlos Heitor Cony e Anna Lee a escreverem "O Beijo da Morte". A obra é um mistura de reportagem e ficção. Mexeu num vespeiro político. Diria mais: num trauma da história recente do Brasil.

Escrito em 2003, o livro foi peça importante para reabrir as investigações sobre as mortes dos líderes da chamada "Frente Ampla", que aglutinou no mesmo polo político Juscelino Kubitschek, João Goulart e Carlos Lacerda. Eles se uniram para combater a ditadura militar implantada no país em 1964 (este ano completa cinco décadas).

Pois bem, passados pouco mais de 10 anos desde a publicação, os resultados perseguidos pelos autores começaram a dar frutos concretos. Os casos foram reabertos. No ano passado, por exemplo, os restos mortais do ex-presidente João Goulart, que estavam na Argentina, foram trasladados para o Brasil.

Jango, como o ex-presidente era conhecido, teve os seus direitos políticos restituídos e foi recebido no Palácio do Planalto com honras de chefe de Estado. Fez-se um reparo na história, pois o seu governo constitucional foi deposto por uma quartelada que lançou o país no obscurantismo por mais de duas décadas.

Pairava no ar a suspeita de que Jango foi vítima de envenenamento quando vivia na Argentina, na cidade de Mercedes. Na época de sua morte (6 de dezembro de 1976), as autoridades constituídas não se deram ao trabalho sequer de fazer a autópsia do corpo. Foi enterrado às pressas na Argentina. Não foi permitido que regressasse ao Brasil, ainda que morto. Temia-se que o velório se tornasse um ato político.

As mortes de Jango, JK e Lacerda ocorreram num curto período de dez meses. As circunstâncias que as envolveram foram, no mínimo, suspeitas. JK foi vítima de um acidente automobilístico, Jango de ataque  cardíaco e Lacerda morreu sem diagnóstico preciso. Suspeitou-se de septicemia.

Soube-se, posteriormente, que as ditaduras militares da América do Sul (especialmente, do Brasil, Argentina, Uruguai e Chile) atuaram em estreita colaboração. Casos vieram à tona de queima de arquivo e limpeza de terreno para evitar o restabelecimento da democracia no Cone Sul. Inclusive, o ex-ministro de Salvador Allende, Orlando Letelier, foi morto em setembro de 1976, vítima de uma bomba, em Washington (EUA).

Tendo esse intrincado contexto histórico como pano de fundo, Cony e Anna Lee misturamram fatos e ficção, Criaram um personagem central que é um repórter que tem como ideia fixa provar que os três líderes brasileiros foram vítimas de uma trama política da chamada "Operação Condor", como ficou conhecida a operação entre os serviços secretos da região.

Ágil, objetivo e direto, os autores construíram um thriller político. A obra é fruto de um minucioso trabalho de pesquisa, que consumiu mais de um ano. O resultado é um romance-reportagem que se lê de um só fôlego. Ao colocar o dedo nessa ferida histórica, procuraram descortinar o véu da verdade, ainda que tateando no escuro. A história agradece por esse trabalho de fôlego, argúcia e obstinação.

Ficha Técnica
Título: O Beijo da Morte
Autores: Carlos Heitor Cony e Anna Lee
Gênero: Romance-Reportagem
Editora: Objetiva
Páginas: 283
Ano: 2003

(Francisco Barros)

sábado, 25 de janeiro de 2014

Um Mergulho na Alma Portuguesa


Gosto de aventurar-me por autores desconhecidos, pelo menos, para mim. Por vezes, somos recompenados com gratas surpresas. Quando não, ao menos valeu a tentativa. Em matéria de leitura, quem não corre riscos priva-se do prazer de navegar por mares literários desconhecidos e deslumbrantes. A descoberta é estimulante.

Foi imbuído desse espírito que lancei-me à leitura de "As Horas Extraordinárias", do escritor e crítico português Luís Forjaz Trigueiros. Para ser sincero, fui estimulado pelas palavras do saudoso baiano Jorge Amado, que disse o seguinte sobre o autor: " Reiventou Portugal, a paisagem e os habitantes, numa série de admiráveis brochuras, esclareceu temas e personagens em artigos e e ensaios críticos, com aguda visão, sempre armado de compreensão e simpatia".

Outro que atestou as qualidades literárias de Luís Forjaz foi o acadêmico Antônio Carlos Villaça, para quem "Trigueiros escritor é a própria imagem do movimento...da vida". Sobre os seus contos, teceu o seguinte comentário: "...tecnicamente impecáveis, irretocáveis, nos transmitem esse amor à vida, esse interesse pelo humano, esse respeito do ser humano, cuja verdade ele busca".

Avalizado pelos dois mestres brasileiros, lancei-me à leitura das "crônicas da vida lisboeta". O nosso autor revela-se um esteta, seja ao descrever as paisagens naturais da cidade, seja, sobretudo, as desnudar os seus tipos psicológicos. E o faz utilizando uma linguaguem plástica, quase musical, digna dos grandes ficcionistas da língua portuguesa.

Mas Luís Forjaz não se limita ao lírico. Ele também sabe exercitar o humor, sutil e inteligente. O melhor exemplo é o conto "Desporto de Inverno". Um outro aspecto que chama atenção é que os seus personagens habitam uma Lisboa que se digladia entre a preservação histórica e a modernidade, esta que não respeita as tradições. Transitam numa sociedade que assiste ao processo acelerado de industrialização. Esse é o pano de fundo de praticamente todos os 10 contos do livro.

O choque do arcaico e do moderno é o fio condutor, o leitmotiv, da obra de Trigueiros. Inconscientemente, os personagens são impactados por essa dialética. Eles se movem sob a influência desse "fantasma" que os espreita e os persegue. Assim, o autor tece a sua teia com muita competência. Tanto que, no mesmo diapasão em que envolve os seus personagens, captura o leitor. Como um visgo.

Pode-se dizer que, ao nos convidar para passear pelas ruas de Lisboa e conhecer de perto a sua gente, Trigueiros nos envolve nos matizes e nos entretons da alma portuguesa. E esse movimento soa-nos como um fado que está sendo executado, não com música, mas com palavras. Até os silêncios são ouvidos. E dão asas à imaginação e te conduzem às ruas da velha Lisboa de antigamente.

Ficha Técnica
Título: As Horas Extraordinárias
Autor: Luís Forjaz Trigueiros
Gênero: Contos
Editora: Nova Fronteira
Páginas: 182
Ano: 1988

(Francisco Barros)

domingo, 15 de dezembro de 2013

Claro como o Rio



Rio Claro
deslizas compassado
por entre as pedras
que saúdam teus passos.

Rio Claro
ávido de luz
vestes sorrateiro
o verão silvestre.

Rio Claro
transparente e fluido
enfeitiças o olhar
singra o poente.

Rio Claro
fluis musicalmente
sonâmbulo reflete
a lua quartocrescente.

(Francisco Barros)

Rio:Claro


                                                                               Foto: Marco Monteiro

Chamo-te
pelo nome:
claro.
Derramas
tua arquitetura
líquida
sobre a face
vulcânica
das tuas
verdes
margens;
em dias
tórridos
teu corpo
volatiza-se
entre mãos
úmidas,
translúcidas,
enlaçando
o horizonte
em camadas
pulsantes,
esvaindo-se
em vapor,
luz,
sonho,
vida.

(Francisco Barros)