sábado, 22 de fevereiro de 2014

Sônia nos Brinda com Diário do Clima


Em pleno verão, num dia que lembra o inverno (a chuva cai intermitente), com frio para os padrões dessa estação, leio compenetrado o livro de Sônia Bridi "Diário do Clima". Garanto: não é papo de eco-chato. O que ela relata não poderia ser mais atual e oportuno. É um alerta bem fundamentado sobre os sinais que a Terra nos manda sobre as mudanças climáticas. E que só não vê quem não quer.

A "invernada" de verão é só um exemplo que tenho às mãos. Ao ler a obra você entende melhor porque o aquecimento global está produzindo coisas como essa (chuvas muito mais intensas que de costume), sem falar no derretimento das geleiras nos Andes, calor bem acima do normal ou nevascas fora dos padrões. O que originou o livro foi a série de reportagens de TV "Terra, que tempo é esse?", que Sônia produziu em conjunto com seu marido, o cinegrafista Paulo Zero. A série foi exibida pelo "Fantástico", da Globo.

Para contextualizar melhor o problema do aquecimento global, mostrar os bastidores das reportagens, o embasamente científico que norteou  a série de TV, Sônia resolveu escrever o livro. Se o telespectador se deliciou com o apuro das imagens de Paulo Zero, com o livro o leitor ganha a oportunidade de se aprofundar mais nessa temática (e também aqui ganha ótimas imagens de fotografia, que estão como encarte).

Para navegar na onda do livro, eu diria que o texto da Sônia flui como um rio. É leve, ágil, refrescante (ainda que o tema seja aquecimento), como um banho de cachoeira. Você sempre quer mais. Objetivo, direto, sem penduricalhos. Figura na melhor tradição dos relatos de viagens. Mas se parece, também, com aquela conversa de amigos num roda de fogueira na beira de um rio com lua cheia (faz lembrar uma noite nas areias do Rio Araguaia).


Para compor a série de TV Sônia e Paulo Zero viajaram por 14 países, num período de seis meses, entre maio e outubro de 2010. Ouviram especialistas e cientistas nos principais centros de ponta do planeta. Mas também embrenharam-se por lugares remotos - nos Andes, na Áfria, na Groelândia, na Amazônia. Sempre em busca do mesmo objetivo: mostrar os extremos do clima e os riscos desse fenômeno para a humanidade.

O faro da repórter nos conduz pelos bastidores das reportagens. Revela o trabalho árdua para alcançar o resultado esperado - a melhor imagem, o melhor ângulo, a melhor luz, o melhor enquadramento, o melhor enfoque. É quando Sônia deixa entrever (sutilmente) a grande paixão pelo que faz. E é justamente isso que suplanta os perigos, os medos, os cansaços e a faz superar todas as dificuldades que se interpõem entre ela e a informação.

A razão conduz o trabalho. Previne perigos. Mas a emoção não pode ser ofuscada quando Sônia se depara com o maior deserto de sal do planeta (Bolívia), com o vôo dos flamingos, com a paisagem de tirar o fôlego na viagem de trem que empreende pelas montanhas do Peru rumo à outrora cidade perdida de Machu Pichu. Isso para ficar só com alguns dos lugares inóspitos que percorreu na sua longa jornada pela Terra.

A jornalista Mirian Leitão, que assina a orelha do livro, diz que o relato de viagem de Sônia "une as pontas do mundo". Ora ela está nos Andes, depois em Paris, em Londres, em Veneza, no Colorado, na África e na Groelândia. Mirian acrescenta: "o mundo parece ser todo vizinho". E para a nossa autora é mesmo. Seja por suas belezas naturais, mas também por suas tragédias climáticas.

O que Sônia quer deixar bem claro: vivemos num mundo totalmente interligado. O derretimento das geleiras nos Andes provoca graves consequências para o clima aqui no Brasil (e explica as intensas e extemporâneas chuvas de verão). O que acontece na África reverbera sobre a maravilhosa cidade de Veneza, e assim sucessivamente. A Terra é um sistema intrincado, complexo, interconectado. Cientistas e especialistas ouvidos pela repórter explicam isso em detalhes.

As conclusões que Sônia tira do seu relato não são para assustar, para provocar pânico e alucionações. Antes, são um convite para nos deixar mais conscientes sobre a necessidade urgente de exigirmos mudanças na forma como as nações encaram o desenvolvimento, a produção, o consumo. Repensar o modelo de desenvolvimento. Ainda dá tempo de mudar o futuro. Basta encarar de frente os problemas presentes. E pensar em soluções e alternativas que sejam viáveis para que as gerações futuras não sejam penalizadas e herdem um planeta em decomposição.

Ficha Técnica
Título: Diário do Clima
Autora: Sônia Bridi
Gênero: Reportagem
Editora: Globo
Páginas: 256
Ano: 2012

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Ficção e Verdade em Álvaro de Campos



Iconoclasta, rebelde, demolidor, hipocondríaco, dialético, cético, sorumbático. Muitas são as definições possíveis para Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, um dos maiores nomes da língua portuguesa de todos os tempos. Mas, talvez, uma única definição possa resumi-lo: gênio.

Sei. Nenhuma novidade nessa sentença.  Se quisesse parodiá-lo, poderia questionar: mas quem disse que busco originalidade, sempre? Às vezes, é necessário desfraldar o óbvio, agitá-lo como uma bandeira. Mas convenhamos que, só um gênio indisciplinado, withmaniano, marinettiano, poderia ter escrito obras-primas como "Tabacaria", "Apostila", "Aniversário", "Ode Marítima", "Ode Triunfal" e "Passagem das Horas".

São poemas arrebatadores. Só alguém levado pela livre manifestação dos sentidos poderia ter parido tais criações. E o que é mais curioso: trata-se da criação de uma criação. Explico: primeiro Fernando Pessoa criou (pariu) um outro eu. No caso, o seu heterônimo Álvaro de Campos, engenheiro naval, para dar vazão a uma personalidade -para dizer o mínimo- audaciosa, escandalosa e polêmica.

Há um século, Fernando Pessoa, deixou a sua alma transbordar ao registrar em versos alguns "estados d'alma" de um espírito irrequieto, perturbado, angustiado. Ele buscava nas palavras e com elas a expressão do inexprimível. Os limites do verbo pareciam estar aquém do seu eu  profundo:

"Ruge, estoira, espuma, vence, quebra, estrondeia, sacode,
Freme, treme, espuma, venta, viola, explode,
Perde-te, transcende-te, circunda-te, vive-te, rompe e foge,
Sê com todo o meu corpo todo o universo e a vida,
Arde com todo o meu ser todos os lumes e luzes,
Risca com toda a minha alma todos os relâmpagos e fogos,
Sobrevive-me em minha vida em todas as direções!"

Na sociedade portuguesa, provinciana, de um século atrás, é de se presumir o que provocou a poesia de Fernando/Álvaro: um escândalo. Tanto quanto alguns anos depois iria se verificar no Brasil a indignação dos conservadores acadêmicos com a Semana de Arte Moderna, em 1922, em especial, quando o poeta Manuel Bandeira agitou o revolucionário poema "Os Sapos".

Mas voltemos ao ponto. Para Pessoa, o que era mesmo a poesia? O que buscava? Qual o seu propósito? Ele fez a seguinte teorização: "Um poema é a projeção de uma ideia em palavras através da emoção. A emoção não é a base da poesia: é tão-somente o meio de que a ideia se serve para se reduzir a palavras". Dizendo assim, até parece simples. Aviso aos navegantes: nem simples, nem simplista. O que soa simples é uma sofisticada elaboração na escrita de um dos maiores estetas da língua portuguesa.

Ele, Pessoa, sem se deixar envolver pelo sentimentalismo, exalta a chegada da noite em versos memoráveis, como estes em "Dois Excertos de Odes":

"Beija-nos silenciosamente na fronte,
Tão levente na fronte que não saibamos que nos beijam
Senão por uma diferença na alma
E um vago soluço partindo melodiosamente
Do antiquíssimo de nós
Onde tem raiz todas essas árvores de maravilha
Cujos frutos são os sonhos que afagamos e amamos
Porque os sabemos fora de relação
com o que há na vida".

A nau poética de Fernando Pessoa, definitivamente, não tinha porto. Por querer alcançar todas as sensações, navegava em todas as direções, rumo ao desconhecido, ao intocado, ao inexplorado. A sua cartografia não mirava um porto geográfico: o alvo era o espírito humano. Mais que o físico - o metafísico. No poema "Passagem das Horas" ele explica isso com precisão:

"Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que via através de janelas ou vigias
Ou de tombadilhas, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco
para o que eu quero".

E o que quer Fernando Pessoa? Ele deseja, pela palavra, pela poesia, expressar tudo e nada e o intervalo entre essas duas coisas. E para isso, obviamente, tem que recorrer a sofismas poéticos ou, ainda, a ironia dialética. O que é certo é que Álvaro de Campos expressou a faceta mais rebelde, audaciosa, provocadora do bardo português. Todo esse arrojo poético pode ser degustado, como um bom vinho de guarda, no livro "Ficções de Interlúdio/4 - Poesias de Alvaro de Campos".

A minha edição data de 1976, da Editora Nova Aguilar. É uma obra para ser lida sem pressa. Cada poesia, sorvida como um pequeno cálice de vinho (de preferência, do Porto). Beba sem moderação. Embriague-se de poesia. E depois, se quiser, dirija. Mas devagar, com calma. É perfeitamente possível refletir sobre o absurdo da existência humana. Imitando o bom rebelde - português.

Ficha Técnica
Título: Ficções de Interlúdio/4 - Poesias de Alvaro de Campos
Autor: Fernando Pessoa
Gênero: Poesia
Editora: Nova Aguilar
Páginas: 224
Ano: 1976

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Ariano: As Falsas Pedras do Reino


Acabo de ler Ariano Suassuna - Um Perfil Biográfico, de Adriana Victor e Juliana Lins, publicado pela Zahar (2007). O livro, como deixa antever o título, traça um panorama da vida do escritor, conduzindo o leitor até o universo mítico de Suassuna. Propõe-se a desvelar o homem, o escritor e a sua obra.

Ao embarcar na leitura somos guiados pelos caminhos trilhados pelo autor desde a sua infância. Dando vazão a esse propósito, as autoras destacam que, desde muito cedo, "Ariano herdou o gosto pelas cantorias de viola, as peças de mamulengo, as farsas do teatro - e os livros, muitos livros".

Autor de obras-primas como Auto da Compadecida, Romance d'A Pedra do Reino, e tantas outras, o escritor nordestino, conforme as autoras, "é um sonhador, dedicado, apaixonado pela família, pela vida e pela arte". Podemos questionar: por que a obra do autor fala tanto de pedra, de circo e de santos? A resposta está na sua história pessoal e da sua terra, com seus mitos e sagas, grandezas e misérias. Enfim, na essência de homem apaixonado por suas raízes sertanejas.

Adriana e Juliana desfiam um texto saboroso. Contam casos corriqueiros, curiosos e pitorescos. É como se estivéssemos na casa de Ariano, tomando um café na sala de visitas, ouvindo as suas histórias, embalados pelo sotaque nordestino. Este talvez seja o maior mérito do livro: deixar o leitor à vontade, vidrado, esperando a próxima história a ser narrada.

A trajetória de vida de Ariano é muito rica. O assassinato do pai, quando o autor tinha três anos, foi uma tragédia que o acompanhou por toda a vida. Mas isso não o impediu de expressar um profundo senso de humor, que está largamente caracterizado em suas criações.

Na realidade, ele soube conviver com a dor. Tanto assim que deixou escapar, em 1990, quando foi empossado na Academia Brasileira de Letras, uma espécie de desabafo: "Posso dizer que, como escritor, eu sou, de certa forma, aquele mesmo menino que, perdendo o pai assassinado no dia 9 de outubro de 1930, passou o resto da vida tentando protestar contra a sua morte através do que faço e do que escrevo, oferecendo essa precária compensação e, ao mesmo tempo, buscando recuperar sua imagem, através da lembrança, dos depoimentos dos outros, das palavras que o Pai deixou".

Esse mesmo Suassuna que teve as suas obras incansavelmente lidas, estudadas, traduzidas e adaptadas para cinema e TV, disse uma vez: "Há duas raças de gente com as quais simpatizo: mentiroso e doido, porque eles são primos legítimos dos escritores".

Para que o leitor não fique chocado com a revelação, ele esclarece o raciocínio: "O que é um mentiroso? É um camarada que não se conforma com o universo comum e inventa outro. Ora, isso é um escritor. Eu também sou assim. Na minha vida não acontece nada, se eu não mentir o que é que vou contar?"

Adriana e Juliana, imediatamente, fazem uma intervenção e assinalam: "Mas aí já há uma mentira. Como foi visto, a vida de Ariano Suassuna serve a um livro, a muitos livros". E é a mais pura verdade. Depois de investigar e repassar a vida do escritor as autoras encerram a obra tentando resumir em poucas palavras o perfil do escritor.

E é assim que o fazem: "Criador de cabras e de literatura. Meio rei, meio palhaço, dividido entre os dois hemisférios da alma humana, exibindo o lado trágico do primeiro, escancarando o que persiste de cômico no segundo. Um complementando o outro, os dois equlibrando-se entre si. O hemisfério rei se complementando com o hemisfério profeta; o hemisfério poeta, com o palhaço.

Eis, em pinceladas sutis, um retrato sensível, de um espírito igualmente sensível, ou ainda, de um "cronista-fidalgo, rapsodo-acadêmico e poeta-escrivão", que não comporta uma única definição, posto que seria reducionista, já que se trata de um criador multifacetado. E é sempre bom lembrar que ele ele é dado a mentir, a fingir, e como nos ensinou Fernando Pessoa: "O poeta é um fingidor/ finge tão completamente/ que acaba fingindo que é dor/ a dor que deveras sente".

Ficha Técnica
Título: Ariano Suassuna - Um Perfil Biográfico
Autoras: Adriana Victor e Juliana Lins
Gênero: Biografia
Editora: Zahar
Páginas: 136
Ano: 2007


domingo, 2 de fevereiro de 2014

Bravo! faz um Gol de Letra


Este ano, sem dúvida, o Brasil vai respirar futebol. Aliás, já estamos respirando. Depois de quase seis décadas e meia, o país volta a ser o centro mundial desse esporte. Trata-se, afinal, da paixão maior do nosso povo. Mas existem vozes contrárias à realização da Copa do Mundo no país. Eu, cá do meu canto, sinto uma imensa vontade de plagiar Nelson Rodrigues: “Só os idiotas da objetividade não vêem a importância desse fato”. Poderia até completar com outra máxima do escritor: “Em futebol, o pior cego é aquele que só vê a bola”.

O nosso cronista maior desse esporte (e, também, o nosso maior dramaturgo), via no futebol algo que transcendia as quatro linhas do campo. Nelson usou o futebol para dissecar a alma do brasileiro. Não é à toa que suas crônicas futebolísticas lançam luzes sobre a formação cultural do país. Outro que usou o futebol como metáfora foi o grande romancista José Lins do Rego, autor da seguinte alfinetada: “... há uma grandeza no futebol que escapa aos requintados”.  Isso na época em que a elite intelectual via o esporte com certa reserva.

José Lins explicou melhor o seu raciocínio: “Não é ele só o espetáculo que nos absorve, que nos embriaga, que nos arrasa, muitas vezes, os nervos. Há na batalha dos vinte e dois homens em campo uma verdadeira exibição da diversidade da natureza humana submetida a um comando, ao desejo de vitória”. Vejam bem: “diversidade da natureza humana”. Alegria, vibração, frustração, êxtase, ódio, amor, heroísmo, covardia, expectativa, decepção, todos esses sentimentos essencialmente humanos estão amalgamados numa única partida de futebol.

Essas considerações (porque não dizer, este preâmbulo, ou para usar uma terminologia do jornalismo, este nariz de cera) me vêm a propósito do livro que acabei de ler, que se chama: “Literatura e Futebol”. Trata-se de uma publicação especial da Revista Bravo, que foi lançada em 2010. O organizador da coletânea foi  João Gabriel de Lima. A edição ficou a cargo do tricolor das laranjeiras Marcelo Moutinho. Destaque especial para o craque das ilustrações Ricardo Soares. Quem assina a edição de imagens, com fotos espetaculares, é Guilherme Tosetto.

O livro reúne um timaço de 18 escritores. Todos tratam, é claro, de um mesmo tema – futebol- utilizando diversos gêneros – crônica, conto e poesia. O leitor se depara com pesos-pesados da literatura como Carlos Drummond de Andrade, Ferreira Gullar, João Cabral de Melo Neto, Rubem Fonseca, Lima Barreto, Luís Fernando Veríssimo, Clarice Lispector (única representante feminina), Antônio de Alcântara Machado, além dos já citados (não poderiam ficar de fora de jeito nenhum) Nelson Rodrigues e José Lins do Rego.


O resultado dessa miscelânea é um painel literário bastante representativo. Ele demonstra como o tema serviu de matéria-prima para grandes nomes das nossas letras. Mesmo assim, há quem veja escassez de autores brasileiros que utilizaram esse assunto como mote para suas criações. Pode até ser. Mas, podemos dizer sem medo de errar: se a quantidade é limitada, a qualidade não é.

Vale a pena o leitor conferir, deleitando-se com os textos saborosos do livro. Puxando a sardinha aqui para os lados do cerrado, eu destacaria como bem representativo dessa obra o conto do escritor goiano, radicado no Rio de Janeiro, Flávio Carneiro. A história de sua autoria é “Penalidade Máxima”. Ela descreve a tensão que envolve um dos momentos mais dramáticos do futebol, que, justamente, serve de título ao texto. O que se passa na cabeça do jogador naquela fração de segundo em que ele vai bater o pênalti. Essa angústia foi meticulosamente retratada no texto do autor goiano.

Como disse anteriormente, a Antologia escalou 18 escritores, tal como se faz numa partida de futebol, só que nesse caso sete ficam no banco de reservas. Nessa seleção literária todos são titulares. E com isso, os organizadores de “Futebol e Literatura” fizeram um belo gol: de letra.

Ficha Técnica                     
Título: Futebol e Literatura
Autor: João Gabriel de Lima (Org.)
Gênero: Coletânea de Literatura Brasileira
Editora: Abril
Páginas: 148
Ano: 2010