domingo, 4 de maio de 2014

A Oratória Mágica do Escritor Ensimesmado



Tenho em mãos, certamente, o último livro publicado por Gabriel García Márquez. Diferente do que se possa supor, não é um romance, muito menos livro de contos, tampouco de reportagens. É uma obra que reproduz os seus discursos. O primeiro, proferido aos 17 anos, em 1944, e o último, quando o autor comemorou 80 anos, em março de 2007.

Ironicamente, o escritor de algumas das obras mais importantes do século XX, por diversas ocasiões, revelou que tinha prometido a si mesmo não fazer, jamais, duas coisas: receber um prêmio e fazer um discurso. Gabo, como era carinhosamente conhecido, tinha pavor de plateias, tanto quanto medo de avião. A vida obrigou-o a superar tudo isso.

Em 8 de dezembro de 1982, em Estocolmo, na Suécia, lá estava o nosso intrépido autor, com uma indumentária típica do Caribe, diante de uma audiência (incluindo o rei da Suécia) em traje de gala (leia-se: smoking) para receber a maior honraria que um escritor pode aspirar: o Prêmio Nobel de Literatura. Na história, poucos recusaram uma homenagem como essa (Jean Paul Sartre compõe esta lista restrita).

Pois bem, o escritor travestido de pescador, proferiu para aquela platéia entusiástica, um discurso apoteótico, que repercutiu em todo o mundo. O título: A Solidão da América Latina, fazia alusão ao seu livro mais famoso: Cem anos de solidão. Gabo escandiu as suas últimas palavras com uma advertência sobre a necessidade de uma nova e arrasadora utopia para a vida.


De maneira veemente, defendeu a liberdade, a verdade, e o amor, como condição para que "seja possível a felicidade, e onde as estirpes condenadas a cem anos de solidão tenham, enfim e para sempre, uma segunda oportunidade sobre a terra". Nada mau para quem se dizia avesso a um microfone e para quem considerava um grupo de 30 pessoas uma multidão.

Esse pronunciamento do escritor reverberou pelos cinco continentes. Lembro-me que quando colei grau na UFG, em jornalismo, no dia 6 de agosto de 1983, foi nele que me inspirei para fazer o meu discurso, pois havia sido escolhido para falar em nome dos estudantes do antigo ICHL (na época as formaturas eram conjuntas). Adverti sobre a ameaça nuclear (era aniversário do lançamento da bomba sobre Hiroshima), critiquei as ditaduras na América Latina e a falta de liberdades no Brasil. Faltou-me, apenas, o gênio de Gabo.

Mas voltando ao livro, ele reproduz 21 discursos de García Márquez. Invariavelmente, em todos os seus textos, o autor sempre deixa transbordar as suas paixões: pela palavra, pela literatura, pelo jornalismo e pela sua terra natal que, segundo diz, não é geográfica, é cultural. Nesse sentido, gostava de argumentar, deveria compreender desde o Sul dos EUA até o Norte do Brasil.

"Eu não vim fazer um discurso" é o título da obra. Ela foi organizada pelo amigo de Gabo, Cirstóbal Pera. No Brasil, foi vertida para o português por outro amigo do escritor, Eric Nepomuceno. Cristóbal informa no Posfácio que trabalhou na seleção dos textos diretamente com García Márquez. Inclusive, GGM chegou a sugerir a colocação de títulos em alguns discursos. É muito provável que a doença de Gabo tenha se agravado logo após esta data, comprometendo assim a sua prodigiosa memória.

A leitura atenta dos discursos, num arco que compreende mais de seis décadas de vida do autor, revela o amadurecimento literário de Gabo. Como assinala Cristóbal, "neles não se encontram apenas os temas centrais de sua literatura, mas também rastros que ajudam a compreender mais profundamente a sua vida". Serve, assim, como uma espécie de testamento literário do genial autor do mítico "Cem anos de solidão", obra que vendeu mais de 50 milhões de exemplares.

Em tempo: Sobre Cem anos de solidão, o próprio autor admite que a sua publicação daria um livro à parte. Não vamos fazer um livro, mas um Post exclusivo para tratar de algumas curiosidades que o envolvem. Aguarde.

Ficha Técnica
Título: Eu Não Vim Fazer um Discurso
Autor: Gabriel García Márquez
Editora: Record
Gênero: Oratória
Ano: 2011
Páginas: 128

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