terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Ficção e Verdade em Álvaro de Campos



Iconoclasta, rebelde, demolidor, hipocondríaco, dialético, cético, sorumbático. Muitas são as definições possíveis para Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, um dos maiores nomes da língua portuguesa de todos os tempos. Mas, talvez, uma única definição possa resumi-lo: gênio.

Sei. Nenhuma novidade nessa sentença.  Se quisesse parodiá-lo, poderia questionar: mas quem disse que busco originalidade, sempre? Às vezes, é necessário desfraldar o óbvio, agitá-lo como uma bandeira. Mas convenhamos que, só um gênio indisciplinado, withmaniano, marinettiano, poderia ter escrito obras-primas como "Tabacaria", "Apostila", "Aniversário", "Ode Marítima", "Ode Triunfal" e "Passagem das Horas".

São poemas arrebatadores. Só alguém levado pela livre manifestação dos sentidos poderia ter parido tais criações. E o que é mais curioso: trata-se da criação de uma criação. Explico: primeiro Fernando Pessoa criou (pariu) um outro eu. No caso, o seu heterônimo Álvaro de Campos, engenheiro naval, para dar vazão a uma personalidade -para dizer o mínimo- audaciosa, escandalosa e polêmica.

Há um século, Fernando Pessoa, deixou a sua alma transbordar ao registrar em versos alguns "estados d'alma" de um espírito irrequieto, perturbado, angustiado. Ele buscava nas palavras e com elas a expressão do inexprimível. Os limites do verbo pareciam estar aquém do seu eu  profundo:

"Ruge, estoira, espuma, vence, quebra, estrondeia, sacode,
Freme, treme, espuma, venta, viola, explode,
Perde-te, transcende-te, circunda-te, vive-te, rompe e foge,
Sê com todo o meu corpo todo o universo e a vida,
Arde com todo o meu ser todos os lumes e luzes,
Risca com toda a minha alma todos os relâmpagos e fogos,
Sobrevive-me em minha vida em todas as direções!"

Na sociedade portuguesa, provinciana, de um século atrás, é de se presumir o que provocou a poesia de Fernando/Álvaro: um escândalo. Tanto quanto alguns anos depois iria se verificar no Brasil a indignação dos conservadores acadêmicos com a Semana de Arte Moderna, em 1922, em especial, quando o poeta Manuel Bandeira agitou o revolucionário poema "Os Sapos".

Mas voltemos ao ponto. Para Pessoa, o que era mesmo a poesia? O que buscava? Qual o seu propósito? Ele fez a seguinte teorização: "Um poema é a projeção de uma ideia em palavras através da emoção. A emoção não é a base da poesia: é tão-somente o meio de que a ideia se serve para se reduzir a palavras". Dizendo assim, até parece simples. Aviso aos navegantes: nem simples, nem simplista. O que soa simples é uma sofisticada elaboração na escrita de um dos maiores estetas da língua portuguesa.

Ele, Pessoa, sem se deixar envolver pelo sentimentalismo, exalta a chegada da noite em versos memoráveis, como estes em "Dois Excertos de Odes":

"Beija-nos silenciosamente na fronte,
Tão levente na fronte que não saibamos que nos beijam
Senão por uma diferença na alma
E um vago soluço partindo melodiosamente
Do antiquíssimo de nós
Onde tem raiz todas essas árvores de maravilha
Cujos frutos são os sonhos que afagamos e amamos
Porque os sabemos fora de relação
com o que há na vida".

A nau poética de Fernando Pessoa, definitivamente, não tinha porto. Por querer alcançar todas as sensações, navegava em todas as direções, rumo ao desconhecido, ao intocado, ao inexplorado. A sua cartografia não mirava um porto geográfico: o alvo era o espírito humano. Mais que o físico - o metafísico. No poema "Passagem das Horas" ele explica isso com precisão:

"Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que via através de janelas ou vigias
Ou de tombadilhas, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco
para o que eu quero".

E o que quer Fernando Pessoa? Ele deseja, pela palavra, pela poesia, expressar tudo e nada e o intervalo entre essas duas coisas. E para isso, obviamente, tem que recorrer a sofismas poéticos ou, ainda, a ironia dialética. O que é certo é que Álvaro de Campos expressou a faceta mais rebelde, audaciosa, provocadora do bardo português. Todo esse arrojo poético pode ser degustado, como um bom vinho de guarda, no livro "Ficções de Interlúdio/4 - Poesias de Alvaro de Campos".

A minha edição data de 1976, da Editora Nova Aguilar. É uma obra para ser lida sem pressa. Cada poesia, sorvida como um pequeno cálice de vinho (de preferência, do Porto). Beba sem moderação. Embriague-se de poesia. E depois, se quiser, dirija. Mas devagar, com calma. É perfeitamente possível refletir sobre o absurdo da existência humana. Imitando o bom rebelde - português.

Ficha Técnica
Título: Ficções de Interlúdio/4 - Poesias de Alvaro de Campos
Autor: Fernando Pessoa
Gênero: Poesia
Editora: Nova Aguilar
Páginas: 224
Ano: 1976

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