segunda-feira, 21 de abril de 2014

Ele Recolhia no Lixo Pepitas de Ouro


A vida é um amontoado de cacos do cotidiano. Como produzir boa literatura a partir dessa matéria informe? Deve-se proceder como o garimpeiro que lava o cascalho na esperança de retirar pepitas de ouro. Poucos conseguem. Mas é do trivial que sai o extraordinário. Essas lições foram muito bem apreendidas (e ensinadas) pelo mestre do cotidiano: o jornalista, dramaturgo, romancista, contista e cronista Nelson Rodrigues, o pernambucano mais carioca entre os nossos escritores.

Dizer que Nelson foi um gênio é "óbvio ululante". E este é apenas um entre centenas de bordões de sua autoria que ficaram nacionalmente conhecidos. A sua popularidade se fez seja como cronista de costumes ("A Vida Como Ela É", é uma prova inconteste disso), seja como aclamado cronista esportivo. E se ainda fosse pouco, é considerado (e, diga-se, com muito justiça) como o nosso maior dramaturgo. E mais: muitas de suas peças de teatro foram transpostas para o cinema e obtiveram grande sucesso.

Nelson é daqueles escritores que sabiam recolher do meio das banalidades difusas as pérolas para compor a sua reluzente literatura. É o caso da série de contos "A Vida Como Ela É", publicada no jornal Última Hora, no período de 1951 a 1961, que obteve grande sucesso de público. Os temas abordados giravam em torno do ciúme, fidelidade, vingança, amor e ódio. Tocavam fundo na sociedade conservadora que preferia ver (ou seria ocultar?) essas questões debaixo do tapete.


O autor não deixava pedra sobre pedra. Com sua apurada lente de aumento remexia o lixo da sociedade. Os casos que desnudava eram motivo de escândalo. Os seus personagens (reais) não gostavam de ser retratados na ficção. O espelho era muito cruel. Mas sejamos francos. A sociedade que Nelson captou é atemporal. As chamadas "taras" continuam a habitar o nosso cotidiano, embora pareçam provocar menos escândalos.

Nelson morreu em 1980. Ele nos deixou uma obra consistente. Foram 17 peças, nove romances e centenas de contos e crônicas. A propósito de "A Vida Como Ela É" o autor teceu o seguinte comentário: "Nego a qualquer um o direito de virar as costas à dor alheia. Precisamos ter, continuamente, a consciência, o sentimento dessa dor". Como seres de carne e osso, a tal ponto que poderíamos tropeçar com eles pela rua, os personagens de Nelson são "humanos, demasiadamente humanos".


A obra "O Marido Humilhado", que acabei de ler, é uma compilação de 20 contos da série "A Vida Como Ela É". São apresentados pela Editora Agir como "histórias inéditas" (truque de marketing?). O meu exemplar faz parte da série PocketOuro (de bolso). Trata-se de uma seleção bastante representativa do estilo do autor. Um incansável observador das cenas urbanas cariocas, com aquele olhar de buraco de fechadura, sumariamente "bocagiano". Um perfeito "Anjo Pornográfico".

Ficha Técnica
Título: O Marido Humilhado - História Inéditas da "Vida Como Ela É"
Autor: Nelson Rodrigues
Editora: Agir
Gênero: Contos
Páginas: 176
Ano: 2008

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